Panegírico

A passagem pela Terra da D. Maria foi uma verdadeira obra de arte. Sempre foi coerente com a crença de que a vida tem de ser bem vivida e bem preenchida, por isso viveu como se estivesse criando uma pintura. Cada momento era mais uma pincelada na tela do dia a dia tão cheio de mistério, fazendo com que mês após mês a existência se tornasse menos misteriosa e sua vida cada vez mais rica. Não tinha medo de usar as cores mais escuras, eram elas que a ajudavam a criar o contraste com as mais claras e brilhantes.

Vivia tentando descobrir a verdade ou finalidade do caleidoscópio da vida em miríades de coisas aparentemente banais, por isso não pintava com medo se os outros gostavam ou aceitavam, apenas sentia o prazer de pintar. Tinha como dever, o que a si mesma impôs, desenterrar desse emaranhado de cores, sombras e formas, o caminho da descoberta que a levou a reconhecer todo o seu potencial. Os princípios dessa pintura eram a essência e vitalidade da própria arte, o que ela ia orientando no sentido de enriquecer aqueles a quem chamava a sua espécie.

Para D. Maria, o ponto mais importante para a realização dessa pintura era ter coragem para não se deter num só ponto, mas produzir combinações de luz e sombra que aplicadas às florestas da beleza e aos mares da criatividade, irradiavam amor nas nuvens da sabedoria, enquanto transformava decepções em realizações. Por vezes pintava com ímpeto passagens inspiradoras para que estas se expandissem aos princípios de todos os pintores deste mundo. Usando pincéis pequenos e grandes nas curvas que contornavam a sua obra, transmitia um significado tão real como irreal, na dimensão do amor que dava forma, nobreza e virtude à sua criação. Calmamente ativa acentuava os relevos para que pelo toque até os cegos consiguissem adivinhar e se identificar com a grandiosidade do belo e do verdadeiro, ou seja, tudo o que para ela não era vulgar. Concentrava-se profundamente na colcheia do modelo que usava, tentando encantar almas que iam do mundo das fadas da sua infância até o dos anjos da sua imaginação. Manifestava alegria na dimensão da tristeza para não perder a esperança. Manifestava tristeza na dimensão da alegria para que o pensar não deixasse de ser inteligente. Ascendia a planos superiores em tonalidades de cores desconhecidas, para que nas sagradas criptas, fosse capaz de consumir os resíduos da ignorância, transformando-os em faíscas de fogos siderais. Elevava o pincel acima dos pilares dos templos para que na sua ânsia de aprender viesse a encontrar a catedral da Verdade, onde ela acreditava ser o lugar onde o infinito se manifestava no finito, e assim descobrir a sua própria infinidade.

A natureza da sua intuição era a primordial forma do efeito mágico da certeza e da sabedoria, onde se identificava com a verdadeira natureza das estrelas. No movimento de espátulas, esponjas, pincéis e cores dava profundidade à sua obra. Ela sempre conseguia ir além do modelo aparente, até o ponto onde várias dimensões se cruzavam e de onde raios de luzes invisíveis e desconhecidos, livremente permeavam e embelezavam a essência da sua criação.

Em pinceladas que desciam ao canto mais ínfimo e aparentemente insignificante dessa obra, capaz de até ficar esquecido debaixo da moldura, ela elevava os escravos, colocando-os acima dos templos, enquanto os impregnava com o que tinha de melhor.

Implementava nas cores e sombras de pinceladas plenas de segurança, a consciência do exercício da vontade em todas as tonalidades do verde que só a esperança podia suportar. Saturava de azuis os mantos de deusas, as quais, como ela dizia: “outrora tão poderosas e depois tão esquecidas”, enquanto refletia o eco das suas fontes e de suas histórias que anseiavam por harmonia, tanto nas montanhas dos seres humanos como nos olimpos dos deuses. Nunca usava pastéis, mas cores verdadeiras e quando pintava o Universo sempre pensava nas células do seu próprio corpo, apercebendo-se da similaridade para poder retratá-lo. Espalhava também galáxias de silêncio e entendimento profundos. Era no inferno e no purgatório que o pincel empurrava os adormecidos, enquanto pintava uma escada feita de primaveras grávidas de abstratos, saciando-se de deliciosas intimidades divinas.

D. Maria, quando, já de corpo velho e puído, deixou de ter força para segurar tintas e pincéis, inebriou esse quadro com a sinfonia da sua própria excelência. Ela costumava dizer que todo o pintor faz muitos quadros, mas que cada Agora só lhe dá um para se dedicar. O importante não é pensar naqueles que já foram arquivados, nem nos que ainda não têm tela. O que realmente importa é aquele sentimento de satisfação no momento em que o pintor assina o seu nome e dá a obra por concluída. Chegando a hora de fechar os reposteiros, o pintor lava os pincéis nas águas dos apegos, pendura o quadro no gancho dos desapegos, grava as experiências nos picos mais altos da sabedoria e descansa para que em outro tempo e em outra paisagem possa continuar a pintar.

D. Maria esboçou o seu quadro em objetivos de alegria e paz, não se importando com o que os outros dissessem, ou se jamais essa obra viesse a ter um lugar de destaque num museu. O importante foi que ao pintar, no ponto mais íntimo do seu ser - aquele que não mente nem agrada à etiqueta, nem ao público, aquele que ninguém mais poderia ver, porque era a sua verdadeira essência - ela se sentia feliz e realizada. A D. Maria, sem o saber nem desejar, foi o Mestre que todos ansiamos conhecer e muito poucos têm a coragem de imitar.

Do livro O Segredo Além do Pensamento

Rosa DeSouza
Enviado por Rosa DeSouza em 29/05/2008
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