Tolerância zero
É muito difícil prever do que é capaz alguém que tenha sido ferido em alguns dos princípios básicos que norteiam a sua vida, como honestidade, generosidade e justiça. Ainda que somente em desabafos sem mais consequências, o fato é que há sempre alguma vontade de vingança por parte das vítimas (ou de quem se coloca no lugar delas).
Quem não concorda com essa afirmação avalie o próprio senso de justiça e o possível desejo de vingança a partir da história verídica a seguir. Ela bem que poderia estar no rol das inúmeras queixas que chegam diariamente nas agências do Procon de todo o Brasil, mas exatamente por não ter sido levada a esta instância é que suscita a imaginação de diferentes desfechos do que realmente ocorreu.
Os que já foram a Belo Horizonte certamente conhecem um dos cartões postais da cidade e um dos pontos preferidos por muitos casais de namorados: o Mirante. Além de uma vista privilegiada da capital mineira, o local possui um comércio à parte de vendedores de pipoca, cerveja e refrigerante. Se você, caro leitor, já sabe do que eles são capazes, então nem precisa ir adiante. Ou melhor, vá e tenha também o prazer de criar sua própria vingança (partindo-se do pressuposto de que sua evolução espiritual ainda não tenha conseguido superar completamente este “doce veneno”).
Há algum tempo um casal amigo resolveu dar um passeio no Mirante. Eles chegaram depois das 18 horas, estacionaram o carro e, como é de costume ali, antes mesmo de conseguir colocar os pés para fora, foram abordados pelo pipoqueiro mais rápido com uma amostra do seu produto. Cheio daquele papo educado de vendedor, o rapaz pedia a preferência caso os visitantes desejassem comer pipoca ou algo mais.
Conhecido pelo seu temperamento calmo e senso de generosidade, o meu amigo comentou com a esposa que seria legal ajudar aquele simpático ambulante. E assim o fez. Pediu um saco de pipoca e um refrigerante e, ao tentar pagar, ouviu do amável pipoqueiro que não era preciso fazer aquilo naquele momento, pois se ele desejasse algo mais seria mais fácil acertar tudo de uma só vez.
Terminados a pipoca, o refrigerante e a vontade de admirar a paisagem, o meu amigo se aproximou do vendedor para pagar o que devia. Par sua surpresa aquela voz alegre disse tranquilamente que tudo havia custado 10 reais (mais precisamente 2 reais do refrigerante em latinha e 8 reais do saco de pipoca). Seu primeiro impulso foi, como qualquer um, abismar-se com a pipoca-com-preço-de-almoço. O segundo foi não pagar e o terceiro foi perceber que aquele indivíduo era parte de uma visível máfia de pipoqueiros-estelionatários que não se furtariam a fazer o que fosse preciso para receber o dinheiro do golpe.
Engolindo seco e conferindo que em sua carteira havia apenas 5 reais, ele pegou o talão de cheques e preencheu uma folha no valor do assalto. Presunçoso, o ladrão do Mirante olhou com desdém o cheque, pediu RG e CPF (ambos impressos), endereço e até referências. Felizmente meu amigo e sua esposa viraram as costas para esta parte do estelionato e foram embora com a sensação de dia estragado.
Essa história, contada pela vítima a seus amigos e colegas de trabalho, gerou uma série de reações que deixariam terroristas com água na boca. Numa delas alguém disse que gastaria quanto fosse preciso para explodir uma dinamite dentro do carrinho (na hora em que o vendedor estivesse fazendo a sua pipoca-de-ouro). Outro adiantou que conhecia um “baixinho invocado” que faria esse e qualquer outro “serviço” de graça (somente por ter o espírito “saraiviano” da tolerância zero). Um terceiro foi mais além e garantiu que daria um jeito de ter o ambulante sob a mira de um revólver para fazê-lo comer todo seu estoque de pipoca. O engraçado é que ninguém sugeriu chamar a Polícia ou registrar queixa no Procon. E então, já sabe qual seria a sua vingança?
A minha foi tão macabra que rapidamente me dei conta que ela era fruto da indignação típica de um país que perdeu a fé na polícia, na Justiça e nos demais poderes. De cabeça fria e coração tranquilo a única conclusão que se pode chegar é a de que se todas as vítimas colocassem em prática suas vinganças secretas (justas ou não) não restariam mais vítimas ou oprimidos. Apenas opressores.