Cada um no seu lugar
O cansaço nas pernas fazia parecer que eu tinha uns 800 kg, mas naquela sexta-feira eu estava determinado a aguentar firme na fila de espera para sentar no ônibus.
Seria como uma recompensa pela semana atribulada e beligerante. Sim, eu merecia aquele pequeno mimo.
Nem o tamanho quilométrico da bendita fila foi suficiente para me desestabilizar.
Um rapaz me abordou oferecendo pagar a passagem, caso eu cedesse o lugar. Conheço bem o tipo, é um "fura-fila" profissional, segura a vaga e oferece a alguém, desesperadamente cansado, pelo dobro do valor, no fim a pessoa paga três vezes mais pelo privilégio de ir sentado.
"Comigo não José", pensei, esse lugar é meu e eu não cedo nem por todo dinheiro do mundo.
Às vezes precisamos defender nossas convicções e não vendê-las barato.
E lá estava eu, orgulhoso da pequena batalha vencida, eis que me aproximava da entrada do ônibus, na mente me veio o programa As Portas da Esperança, parece eufemismo, mas é a mais pura expressão da realidade, talvez mais real do que um programa de TV.
Enfim, após 48 min de suplício com os calcanhares doloridos, os calos latejantes e a barriga da perna inchada, eis que vislumbro o assento, um trono na verdade, o símbolo máximo da dignidade do trabalhador CLT. A grande promessa de uma viagem tranquila, voltando pra casa sem o peso de alguém se escorando nas suas costas, ou um ambulante te empurrando para passar com aquele gancho que contém praticamente uma compra de mês e tudo por "dois real!".
Fui um dos últimos a embarcar e, infelizmente, o único lugar disponível era próximo do motorista e no corredor. Mas, que se dane, vou me esparramar no assento, ocupando cada milímetro que me pertence e desligar automaticamente os sensores da consciência. Não pude evitar um pequeno sorriso de satisfação.
Entretanto, quando tudo estava devidamente encaminhado para o apagão, eis que uma octogenária sacoleira dos infernos para justamente ao meu lado.
"NÃO! MIL VEZES NÃO!"
"Vira por lado, finge que dormiu."
"Nãonãonãonãonão!"
Por mais que eu queira, foi impossivel ignorar a velhinha com olhar de Gato-de-Botas.
Levantei e cedi o lugar.,