Uma Cartinha
Quando eu o vi pela primeira vez, ele estava parado na porta da igreja, à saída da missa do Galo. Não tinha como ignorar aquele idoso simpático. Muito diferente da população local, ele era gordo e alto, tinha a pele rosada, cabelos e barba brancas, sorriso generoso, mas o seu olhar inexplicavelmente me hipnotizava. Nunca esquecerei como era doce, brilhante e mágico. Acho que eu tinha uns dez ou onze anos e, como toda criança da região, era magrelo e pequeno, com muita vontade de conhecer a vida. Eu ia passar direto, mas o homem me dirigiu sua voz doce e serena, pedindo para acompanhar a família na volta para casa. “O caminho é longo”, argumentei, o homem não se intimidou e seguiu em frente.
Lembro que antes de protestar, Cebola chegou próximo ao homem, o farejou em todas as partes e depois se deixou acariciar na cabeça, e se tem uma coisa que aprendi foi confiar nos instintos dele. Se Cebola rosnasse ou mostrasse os dentes, pode ter certeza de que não era flor que se cheirasse. Por isso, apesar da aparência peculiar do idoso, não tive receio em caminhar ao seu lado.
Peguei minha irmãzinha no colo e nos colocamos à marcha.
Muitas famílias voltavam juntas pelas estradas empoeiradas da seca. A missa do Galo era puxada e sempre terminava na madrugada do dia 25, como o sol ainda não tinha nascido o clima estava fresco. Meu avô achava exagero obrigar as crianças a esse sacrifício, mas a mãe sempre fazia questão de todos presentes na santa missa, “quem leva o filho pra igreja, não busca na cadeia”, era o que ela dizia. Diante desse argumento quem iria reclamar? Vovô levava minhas duas irmãs no colo e a mãe mais uma, todas caindo de sono.
Enquanto isso, eu não sabia porque, mas não me afastava do senhor que, apesar da idade avançada, não tinha a menor dificuldade em nos acompanhar e nem se incomodava com a vigilância constante.
— O senhor é do Sul? — perguntei.
O homem esboça um largo sorriso.
— Eu sou do mundo.
— Como isso, não tem casa?
— A minha casa fica lá no Norte.
— Belém?
— Mais pra cima.
— Macapá?
— Mais pra cima.
— Oxi! O que tem mais pra cima? Só o céu.
O homem solta outra gargalhada. Não entendi o motivo para tanta alegria, mas decidi continuar.
— O senhor veio só pra assistir a missa? Não tem missa perto da sua casa?
— Ah, eu vim fazer umas visitas.
— Visitar quem? Vai na casa do Doim? Ele tá doente.
— O que ele tem?
— Caiu de cama depois que bebeu água do córrego.
— E por que bebeu essa água?
— Porque tava com sede, ora.
— Entendi, mais alguém bebeu da mesma água?
— Todo mundo, mas só ele ficou doente.
— Ah, sim. Você não quer ajuda para carregar essa bebê? Parece pesada.
— Ela não é pesada, é minha irmã.
— Ó, entendo.
— O senhor é médico?
— Por que, tem mais gente doente?
— Tem a Xuca.
— Quem é a Xuca?
— É nossa cabra, faz tempo que não dá mais leite. O vô falou que se não presta pro copo, vai prestar pra mesa.
— Como assim?
— Vai virar comida. O seu Léo não vende mais fiado, ele disse que a nossa conta tá muito grande, por isso a gente come pouco. O senhor é gordo, deve ser muito rico.
O homem gargalha de novo.
— O senhor trabalha lá no Sul, trabalha?
— Eu viajo o mundo todo.
— Oxi! — olhei para frente tentando ver o horizonte.
— O que foi?
— Esse mundo é muito grande, né?
— Ah, nem me fale, é muito grande mesmo.
— O senhor vai de carro ou de mula?
Mais uma gargalhada.
— Eu voo.
— Oxi!
— Você tem medo de voar?
— Meu vô diz que quem tem que voar é passarinho.
— Cadê seu avô?
— Vai na frente, sim senhor, é ele mais a mãe, a vó e as minhas irmãs.
— E seu pai?
— O pai foi pro Sul procurar trabalho.
— E tem mandado notícias?
— Não, ele me disse pra cuidar da casa até ele buscar a gente, mas faz é tempo, viu?
O homem olhou para mim com tanto amor, mas como era muito criança não percebi. Ele tirou do bolso uma folha de papel que reconheci na hora.
— Foi você que escreveu essa carta?
— Fui eu sim, senhor.
— Que bom, sabe escrever.
— Um cadin, sei sim.
— Mas precisa colocar o endereço.
— Só botei o pai, não sei onde ele tá.
— Pois é, quando a criança coloca só “pai” as cartas vêm pra mim. Daí, eu vim ver vocês. Então, me perguntei, “por que essas famílias com tantas crianças me escrevem tão pouco?”
— O senhor recebe muitas cartas?
— Nessa época sim, de todas as partes do mundo, principalmente pedidos de crianças.
— O que elas pedem?
— Alegria.
— E o senhor dá?
— Depende mais delas do que de mim. Você nunca ouviu falar do Papai Noel?
— Já ouvi sim, mas o vô fala que no Natal o que importa é o Menino Jesus.
Nessa hora o idoso esboçou um sorriso diferente, acho que ele sentiu uma grande admiração, não por mim, mas todos nós.
Depois de um tempo em silêncio ele me perguntou:
— Você é feliz Dondinho?
— Não sei, como é ser feliz?
— Depende de cada pessoa, mas para a maioria é o momento de bem estar, sem problemas para resolver ou obrigações a cumprir. Para você o que é felicidade?
— Acho que é quando a gente come. Eu queria ver minha irmãzinha forte para ela poder andar. A doutora disse que ela tá fraquinha porque come pouco, mas a mãe dá o que a gente tem. Sei lá, não penso muito nisso, seu...
— Nicolau, pode me chamar assim.
O sorriso, dessa vez foi diferente, seu Nicolau viu que, apesar das dificuldades, nunca abandonamos a fé na Divina Providência.
— Dondinho, por que você não disse as coisas que estão acontecendo pro seu pai? Por que não falou que o vô tá doente e suas irmãs muito magras e quase não comem, também devia dizer que a mãe só vive triste chorando de saudades.
Naquele tempo não queria que o pai ralhasse comigo, pensando que não estava cuidando da família, então na carta só perguntei se ele tava bem, se queria que a gente enviasse um pouco de fubá pro mingau e se no Sul fazia frio mesmo, como as pessoas falavam. Não era muito, mas era o que sabia escrever.
A conversa foi longa e chegamos rápido. O sol já pintava o céu de rosa, laranja e azul, e de todas as estrelas só dava para ver uma, “vai ser mais um dia quente.” Pensei.
Só então me preocupei em saber como íamos dar alguma coisa pro senhor comer, não tinha nada em casa. Mesmo sendo uma criança fiquei envergonhado, entrei, deitei a mana na rede e tinha intenção de sair para catar taioba e a vó fazer uma sopa. Mas, quando voltei para porta o senhor desapareceu, senti uma grande tristeza no peito, pensei que o velhinho tinha se ofendido por ficar fora de casa, queria chorar.
De repente, a mãe apareceu toda feliz gritando que a Xuca voltou a dar leite, a gente poderia a vender e se alimentar de novo.
Olhei para o céu e recitei uma Ave Maria agradecendo.