Lamento de um Rio
Lamento de um Rio de Scheilla Lobato
NA FRASE, "EU SÓ QUERIA PASSAR".
Criei um mote e fiz esse cordel.
(Mote e Glosa) Jailton Antas
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
A
Onde nasce não importa
Como cresce também não
Seja em forma de anão
Banhando só uma horta.
Quem não se prende em comporta
Se destina ir ao mar...
Venho em defesa falar
Se O Rio falasse diria
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
B
No imprensado da rocha
Bem no cume do serrado
Fui nesse monte gerado
Onde só pedra me arrocha
Meu destino desabrocha
Começo a escorregar
Desprendo do meu lugar
Sem desejar avaria
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
C
Nasci e me debandei
Pelo caminho da rota
E sem planejar derrota
Derrotando comecei
No seio que mais amei
Não posso atravessar
Os intulhos vou falar
Sem perder a sintonia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
D
Brocaram meus arredores
Queimaram minhas babujas
Deixando as nascentes sujas
Vou falando os por menores
De serra abaixo as piores
Atitudes vou narrar
O que me impede de andar
E me manter limpa e fria
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
E
Árvore que me apoiava
Queimou com raiz e tudo
O mulugum caroçudo
Que na curva eu esbarrava
Era quem me segurava
Pra descer mais devagar
As curvas pra eu frear
Se foram na anarquia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
F
Ainda em meio a serra
Sem caminho definido
Descendo desiludido
Um bezerrinho que berra
Misturo com lama e terra
E sigo a arrastar
Sem caminho pra trilhar
Me açoita a ventania
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
G
Me encheram de entulho
Toco e ponta de vara
O restante da coivara
Destruíram meu orgulho
Na tristeza que mergulho
Vou dragando Sem parar
Atrofiando o andar
Perdendo a simpatia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
H
Quando chego na baixada
No largo do capinzal
Vem carcaça de animal
Que de ruma é despejada
Se vou cruzar uma estrada
Na ponte vai engalhar
Estreitando o lugar
Que eu tinha como bacia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
I
Grandes as propriedades
Cortando em meu trajeto
Mas me tornei objeto
De muitas variedades
Recolhendo crueldades
Que o homem joga pro ar
Desde um velho caçuá
Que tanto serviu um dia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
J
São tantas as invenções
Num dito de evoluir
Inventam de construir
Se perdem nas construções
Ripas, tijolos, torrões,
Sem quantias a somar
Me atiram e a olhar
Assiste o que copia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
K
Se hoje tudo é moderno
Me enchem de agrotóxicos
De todos produtos tóxicos
Seja na seca ou inverno
Eu sigo como um interno
No meu seio de morar
De tantos males levar
Me sinto sem serventia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
L
Ainda tem as usinas
Que feitas sem coração
Sua contaminação
Não basta vim das campinas
Despejam fezes, urinas
Para a usina enxugar
E depois de enxaguar
Faz o que não mais devia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
M
Recebo restos mortais
De algum bicho que sobra
Restante de toda obra
Os esgotos dos currais
Paredes, portas, e umbrais.
Tudo a me soterrar
Pra quem vive de pescar
Vai deixando a pescaria
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
N
Minhas margens demolidas
Fruto do desmatamento
O meu antigo ornamento
Era as barreiras temidas
Com estruturas detidas
Tenho que atravessar
A zona rural, e entrar
No meio da burguesia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
O
Entrar na cidade grande
Bastante cheio e pesado
Com meu espaço estreitado
A destruição se expande
E por mais que eu comande
Tentando amenizar
Fico triste por causar
Destruição em quantia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
P
Invadindo casas, ruas,
Comunidades carentes
Criancinhas inocentes
Do berço arrasto nuas
Em brutalidades cruas
Me turbo a devastar
Me assumo em me culpar
Sinto tremenda agonia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar
Q
É tanta tribulação
Por destruir as favelas
Mas é que os esgotos delas
Derramam no meu purão.
Mesas, cadeiras, fogão
O que não serve pra usar!
Que pra eu atravessar
Destruo quem me prendia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar!
R
Se não bastasse o pobre
O burguês também me ofende
O descaso lá se rende
Que meu lamento desdobre
O Poder corrupto encobre
Seu jeito de me afrontar
Inté lixo hospitalar
Despejam de noite e dia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar!
S
Fábricas e fabriquetas
As oficinas de móveis
Industrias de automóveis
Me usam como gavetas
Suas pequenas muretas
É só para disfarçar
Vem óleo pra encharcar
E destruir qualquer cria
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar!
T
Palmilho sem os cuidados
E sigo a percorrer
Quem era pra defender
Eram esses mais chegados
Por eles amordaçados
Não tenho como negar
Arrastando inté matar
Não sei o quanto doía
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar!
U
Assim chego a meu destino
Carregado de destroço
Pela prôa de remorso
É o fim do peregrino.
Tachado de assassino
Me entrego ao eterno lar
Me sepultando no mar
Sem direito a anistia...
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar!
V
Não nasci pra esse fim
Fui criado pra viver
Para a vida proteger
E evitar tempo ruim
Pra terra ser um jardim
Em todo canto um pomar
Pra todo ser vivo olhar
E propagar harmonia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar!
W
Sóbrio e diferentes,
Sem salinas e mazelas
As criaturas mais belas
Erão nas águas correntes
Meus peixes foram pras gentes
Meios de vida em pescar
Além de alimentar
Da pesca sobrevivia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar!
X
Nascentes em todos cantos
Quando nós fomos formados
Os nossos associados
Surgia em todos recantos
Sem represas para tantos
Pois podíamos transladar
Fomos feitos pra somar
A quem de mim dependia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar!
Y
Alimentei fauna e flora
Multipliquei os guarais
Fui motivo dos corais,
Mas acauã hoje chora
O bem te vi comemora
Nas margens, com seu cantar.
Tá vivo mais não estar...
Morreu quem tudo nutria
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar!
Z
Arara, lambu, perdiz,
Sariema e azulão.
Rasga mortalha, cancão,
Ribançã, anum, concriz.
Lambu-pé e colibris.
Raposa e tamanduá,
Gato do mato, guará!
Foram minha companhia
Nada fiz por covardia
Eu só queria passar!
FIM
Já fui, hoje não sou mais
A força dos Navegantes
Índio em suas vazantes
Lucraram até demais
Trovoada e temporais
O que viesse inudar
Nunca findava em matar.
Fatalidade existia...
I não fiz por covardia
Mas só queria passar!!