LAMENTO DE UM ENTREGADOR

MEMÓRIAS IMEMORÁVEIS DA ÁGUA PURA - parte 2

Num momento de inspiração

Acompanhado de lucidez,

Faço da minha situação

Nada boa há quase um mês,

Virar versos sem pretensão

De serem a bola da vez.

É que ficar um mês de férias

Sem para tanto receber,

É deixar que a miséria

Bata à porta, pode crer!

Um exemplo pra essa galera

Que um dia quiser se atrever.

São trinta longos dias

Olhando para as paredes,

Visitando a casa de tias,

Se balançando numa rede;

Chega até dar uma agonia,

Como quem sente sede.

Sem ter o que gastar

E sem ter para onde ir,

O jeito é tentar descolar

Um “0800” pra se divertir;

Pobre nasceu para se ferrar

E ai daquele que desmentir.

Somente com dinheiro na mão

É que se consegue ser feliz,

A mulherada chove de montão,

Donzela, casada, até meretriz.

E não me venham com sermão

Mostrando o que a Bíblia diz.

Enquanto tiver arroz e feijão

Lá em casa para eu comer,

Fome eu não passarei, não,

Mas sei que isso não é viver.

Da vida eu quero emoção

E mais chance para vencer.

No entanto, voltar a trabalhar,

Encarar novamente a “Água Pura”,

A minha vida não vai melhorar,

Só vai aumentar minha amargura.

E o meu tédio ainda vai acabar

Levando-me às trevas da loucura.

Mas voltando a falar de dinheiro

Que é a maior alegria do povo,

Aliás, desse mundo inteiro

(Isso não é um fato novo),

Na Água Pura ele é “forasteiro”:

É como procurar cabelo em ovo.

Dinheiro aqui só sai aplicado

Ou em forma de pagamento,

Não para o entregador ferrado

Mas para o fornecedor nojento.

Para nós ele já vem descontado

No pneu, no aro, no rolamento...

E acontece um fato engraçado

Quando é dia de pagar geral:

O Mazinho, “patrão” desgraçado,

É o primeiro a fugir do local.

Chega a ser até debochado:

É a vergonha de pagar tão mal.

Dona Márcia, minha companheira,

Ouça com atenção o que digo:

Não seja a senhora a primeira

A só olhar para o seu umbigo.

Conceda-nos, pois, uma maneira

De se livrar de tanto castigo.

Se ponha no nosso lugar,

Pelo menos, por um segundo,

E pare de tanto nos explorar,

Entregador não é vagabundo.

Aqui é onde se pode encontrar

As piores entregas desse mundo.

Tem a Mascarenha de Moraes,

O suplício de todo entregador,

A rua Assis Brasil não fica atrás,

Visconde de Albuquerque, causa até dor.

Botafogo, Leblon, ainda quer mais?

Um ser humano merece mais amor.

Chega de pagar por peça quebrada

Quando muitas vezes temos razão,

E parem com tanta tarefa pesada

Como ter que descarregar caminhão.

Sem falar na atitude impensada

De nos descontar até garrafão.

Entregador só vive cansado,

Dorme que só uma cadela,

Café da manhã é aquilo regado

À base de pão com mortadela.

A fraqueza tem como resultado

Um funcionário cheio de “mazela”.

É só olhar para a cara do sujeito

Por exemplo, a do Vandinaldo,

Pinta de honesto, um otário perfeito,

Trabalha que só um condenado.

Não fosse a mentira, seu maior defeito,

Eu teria mais pena do desgraçado.

Lúcio Cachaça é um batalhador,

Diria um vencedor por natureza.

Defeitos à parte, é trabalhador

E mora longe que é uma tristeza.

Pega ônibus, trem, carroça, até trator

E ainda enfrenta essa dureza.

Tem o João Martins, esse nanico

Que fugiu da seca lá do Ceará,

Baixou no Rio pensando ficar rico,

Mas como diz o ditado popular:

“Sonho de merda acaba no pinico”

E na Água Pura veio se lascar.

Gilson Gigolô é o tipo do sujeito

Puxa-saco e metido a brigão,

Nunca foi um entregador perfeito,

É também o que mais quebra galão.

Como descarregador tem um defeito:

Quer ser o dono do caminhão.

E o Júlio, o que se pode dizer?

Bem, é um mentiroso inveterado.

Na mentira, para melhor saber,

Ganha até mesmo do Vandinaldo.

Conserta bebedouro e sabe convencer

As velhinhas a pagarem dobrado.

Thiago Bafão, o Thiago Carahiba,

Esse é amigo do Gilson Dentinho,

Sonha um dia conhecer a Paraíba.

Para isso, tá juntando um dinheirinho.

Mão de vaca, brigou com a barriga,

Economiza até no troco do cafezinho.

E eu nem sei se o “Azedo”,

Aquele que mora lá no “Chapéu”,

Se ele já melhorou do dedo

Naquele seu disfarce fiel.

O que não era nenhum segredo,

Não conseguia disfarçar seu medo

Nesse “ganha-pão” tão cruel.

Vou finalizar esse meu lamento

Que se faz tão necessário,

Para lembrar aos quatro ventos

Que entregador não é otário.

Trabalha que só um jumento

E nunca sabe o que é aumento

Nessa merreca de salário.

Paulo Seixas, abril/2005