NA “ÁGUA PURA” É ASSIM...
MEMÓRIAS IMEMORÁVEIS DA ÁGUA PURA - parte 1
Há trabalho que se suporte
Outros do tipo “ainda se atura”,
Há trabalhos que levam à morte
Ou que fazem beirar a loucura.
- Desafie então a sua sorte
Trabalhando na Água Pura!
Um serviço um tanto arriscado
De tão pesado, até desespera,
Imagine um triciclo quebrado
Descendo a mil numa banguela;
Pode deixar o sujeito acamado
O crânio rachado e as costelas.
Uma fábrica de gerar doente
Seja peladura ou arranhão,
Coluna não há quem aguente
É muito esforço e contusão.
E ainda se pode ficar contente
Quando não quebra garrafão.
Para cada garrafão quebrado
Eis que surge uma cena ingrata;
No salário já vem descontado
Pelo empregador sangue de barata.
É o entregador sendo maltratado
Tal qual um cachorro vira-lata.
Nem Jesus Cristo no calvário
Sofreu tamanha humilhação,
Em sua época não havia otário
Que trabalhasse por comissão;
O justo deveria ser um salário
Mais porcentagem em cada galão.
Pra compensar o trabalho extra
Que há de sempre aparecer,
Desacompanhado de gorjeta
Fazendo o entregador sofrer;
Lavar garrafão de madame besta
Sem ter caixinha é de doer.
É a “caixinha” que fortalece
O salário do trabalhador,
Tem gente que até se esquece
Do direito de um entregador,
Que faz por onde e merece
Uma moeda de qualquer valor.
Lembrando aqui uma raça
Existente no Rio de Janeiro,
Certamente a pior desgraça
E que abrange o mundo inteiro.
Nenhum entregador aguenta
Essa racinha tão nojenta
Que é a do “pirangueiro”.
Um miserável que faz conta
Da moedinha de 1 centavo,
Merece mesmo levar uma ponta
Não passa de um corno safado.
Um filha da puta, um “mindingo”,
Deixa de ir à missa aos domingos
Para não ter que dar um trocado.
Pode até parecer loucura
Gostar de um lugar assim,
Ser entregador na Água Pura
É buscar o seu próprio fim,
Um trabalho que é a mistura
Daquilo que há de mais ruim.
Mas o diabo que se condena
Não é tão feio como se pinta,
Tem dias que até vale a pena
Fazer entregas, mas não se minta:
Tem que haver feriado em cena
Ou que o mês seja de trinta.
Um trabalho onde não há patrão
Talvez por isso até seja bom,
Ruim é descarregar caminhão
Ir pra Botafogo ou Leblon,
E ainda ter que limpar chão
Uma invenção do Seu Ision.
Sem essa de lavar banheiro
Entregador não é escravo,
Isso é serviço de faxineiro
E pra isso ninguém é pago;
Acrescentem mais dinheiro
Ou a faxina fica de lado.
É do Mazinho essa obrigação
Não faz nada o dia inteiro,
Só vive a soprar garrafão
Em perturbação é o primeiro;
O seu diploma de musculação
Procure usar no banheiro.
O entregador que se preza
Vive reclamando a toda hora,
Pede acordo, chora e reza,
Implorando pra ir embora.
Desenganado, até Deus despreza,
Rogando ao Diabo uma melhora.
Até porque ser despedido
Isso é caso de muita luta,
Nem que alguém tenha ofendido
Algum cliente filha da puta.
No entanto, vem logo o castigo,
Um “Leblon” bem sacudido
Como uma espécie de multa.
Não é à toa que um Fulano
Que sequer vem trabalhar,
Consegue ficar quatro anos
Empregado neste lugar.
Aqui se aceita todo mundo,
Safado, vigarista, vagabundo,
Basta apenas saber pedalar.
O sofrimento só é constante
Para quem decide encarar,
Aquele novato, o iniciante,
A qualquer hora pode rodar.
Somente a carteira assinada
É a garantia confirmada
De quem pretende bagunçar.
Tantos por aqui já passaram
Alguns sequer completaram o dia,
Mas em sua passagem deixaram
Um rastro de sangue e agonia.
Hoje, enfim, os que escaparam
Encontram-se loucos ou se deparam
Em alguma sala de psiquiatria.
Dos que começaram o ano
Resta a metade da demanda,
O velho Jorge do Turano
O Karlão da Nova Holanda,
E o Marcelo Manjubinha
Morador lá da Rocinha
Que “faz água” pra caramba.
Tem o “Berone” Marcha-Lenta
Trabalhando clandestino,
Haroldo Bucha, ninguém aguenta,
Só sabe viver dormindo,
E o André, sujeito sem futuro,
Uma briga de foice no escuro
É mais bonita que ele rindo.
E o narrador deste fatos
Que não se esconde na história,
Testemunha de alguns atos
Que hão de ficar na memória,
E que jamais esquecerá a loucura
De haver pisado na Água Pura
Uma prisão sem escapatória.
No fim, a liberdade prevalece,
Apesar de muito se lamentar,
Trabalhou na Água Pura não esquece
Vez ou outra se pensa em voltar.
É um castigo que ninguém merece,
Mas a gorjeta que fortalece
É um incentivo para retornar.
Dê seu sangue por este lugar
Que haverá de se arrepender,
Faça o seu nome se destacar
Que vão fazer você sofrer,
E se ficar em 1º no placar
Não vá depois se lamentar
Das dores que irão lhe ocorrer.
RIO, JUNHO/2003