DE VOLTA A CASA VELHA (CONTINUAÇÃO)

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Recordo minhas agruras

Naquela simples morada,

Festinha na trovoada...

Um começo de farturas

As bundas de tanajuras

Com miolo gordurento

Comi e até comento

Que tristeza! se faltasse...

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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O caco de quebra-queixo

Rachou num pé de parede,

Um armador sem a rede,

Da lazarina, o feixo,

A ponta velha de um eixo,

Do carro de boi zoadento,

O meu descontentamento

Fez com que eu me perturbasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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O capote corrompido

Uns caibros prendendo a linha

Ripão inteiro não tinha

Tava sendo demolido

Telhado comprometido

Sem amparar chuva e vento

E o oratório de São Bento

Nada vi que o aproveitasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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O velho criado mudo

Perto da penteadeira

Cheio de anel, posseira,

Mistral, talco e de um tudo

Um nova seita olhudo

Roedozinho e fedorento

O espelho de mãe cinzento

Me olhei e não vi a face

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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No quarto das mogigangas

Quando olhei quase desmaio

Vi taba do papagaio

Muretas, cangalha e cangas

Os cambitos de pitangas

E o cambão do jumento

Um rádio sem “elemento”

Não tinha pra quem tocasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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A cisterna no oitão

Rachou no meio a parede

Quem tanto matou a sede

Perecer na sequidão

Rato, cobra, escorpião,

Foi o que vi no momento

Pai se foi com o cimento

Pra que ela não vazasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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A calça de pai dormir

Esgarçando atrás da porta

Mamãe também tava morta

Foi triste o meu prosseguir

Não deu mais pra assistir

Pois sofri grande tormento

Tava tudo em poeirento

Como se pai e mãe voltasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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À lenha era o fogão

Mamãe fazia o café

Bem cedo tava de pé

Tivesse comida ou não

Não tinha biscoito e pão

Fazia ali no momento

Qualquer tipo de alimento

Pra que agente escapasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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Tudo que vô arranjava

Bebia no mesmo dia

Vovó muito que sofria

E a casa sustentava

No alugado trabalhava

Pra arrumar mantimento

Cortando agave espinhento

Pra que a todos sustentasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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Já apanhei de chicote

E dormi sempre no chão

Colchonete ou papelão

Cururu no pé do pote

Doutro lado um caixote

Com um peba fedorento

Num piso sem ter cimento

Como esquecer esse impasse?

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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Na época de São João

Papai fazia a fogueira

Com enxofre na roqueira

Eu fazia a diversão

Nunca soltei foguetão

Pra meu descontentamento

Mas eu assistia atento

Visinho que festejasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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De vara uma cama bela

Mamãe e papai dormiam

Os meninos se estendiam

No chão no claro de vela

Brecha de porta e janela

Era o nosso sofrimento

Pois era frio o vento

Não tinha como esquentasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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Minha infância verdadeira

Televisão eu não tinha

Usava a da vizinha

Véa metida a rezadeira

Tinha a função de parteira

Vivo nascia um por cento

Tinha um marido agourento

Agourando o que encontrasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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Brinquedos artesanais

Peteca bila e pião

Arapuca e alçapão

De cipó eram os currais

De sabugo os animais

De flecha um cata-vento

De verdade era o jumento

Pra que tudo transportasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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Na casa dos meus avós

Seu quarto ninguém entrava

Ferrolho tramela e trava

Sem explicação a nós

Morrendo e logo após

Entrei em seu aposento

Tostão e réis o provento

Sem valor que se somasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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Na roça até o sol posto

A luta não acabava

Pro banho água eu buscava

Pra cedo lavar o rosto

Escola só tive gosto

Quando fiz um juramento

Ser fiel ao regimento

Que papai me imputasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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Nunca usei mosqueteiro

No meu simples camarim

Muriçoca e maruim

Agiam muito ligeiro

O esterco num fogareiro

É quem dava o livramento

Da vaca, burro ou jumento

Importava que espantasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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Velho fogão de tijolo

Me aquecia junto dele

Os rachões que tinha nele

Não fazia se quer bolo!

Me vi pasmo como tolo

Rever naquele momento

Quem tanto deu alimento

Não teve quem conservasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

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Grampos velhos num bornal

Uma enxó e esticador

Turquês e arrancador

Pra cercar o capinzal

Ainda achei o varal

Da carroça do jumento

Pai se foi e o ornamento

Não teve mais quem usasse

Se a casa velha falasse

Contava meu sofrimento

...

Jailton Antas e MOTE:POETA João Joassi
Enviado por Jailton Antas em 30/07/2012
Reeditado em 22/04/2016
Código do texto: T3805268
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