Saudades da BODEGA

A budega!!

01

Na trajetória da vida

Todos têm uma história

A sã amiga memória

Definha sem ver saída

Mas da infância sofrida

Ela conserva o retrato

Vez por outra faz contato

No imaginário ver tudo

E sofre quem fica mudo

Ou tem vergonha do mato

02

Todo velho dar relato

Quando os dias tão findando

E dizem que é caducando

Que eles lembram de fato

Às vezes no anonimato

Descrevem pela metade

Alguns fatos de verdade

Ou historia de trancoso

Do passado mais formoso

Que inté chora de saudade

03

Não vejo nisso maldade

Quem caduca é sem sentir

Eu antes de possuir

A doce e melhor idade

Muito lúcido na verdade

To como que caducando

Vejo meu sitio sonhando

Já que moro na cidade

Tenho pura identidade

Como matuto falando

04

Passa um filme relembrando

Aquele doce cenário

Que mesmo no imaginário

Eu revivo só lembrando

A fita quase apagando

Sem cloro nem acetona

A mente se sente dona

De todo esse espaço

Mas num assume o fracasso

Que na velhice detona

05

Mesmo assim pego carona

No pouquinho que restou

O tempo não apagou

Com saudade vem á tona

Desde um barraco de lona

Cada trapo relembrado

Do sofrimento embaçado

Pra viver a epopeia

Revivendo na ideia

Um passado recordado

06

Mesmo fosco meio nublado

Onde a doçura se apega

Lembro a saudosa bodega

Que foi tudo no passado

Um chique supermercado

Dos tempos de antigamente

Sem ter luxo o ambiente

Servindo rico e o pobre

Pois tudo lá era nobre

Cruzando o mesmo batente

07

Bem no calçadão da frente

Os fregueses se ajuntavam

Enquanto negociavam

Consumiam o aguardente

Um boro preso no dente

De seda e bem fedido

No arredor todo cuspido

Batente liso igual sebo

E um copo engana bebo

Onde tudo era servido

08

Todo mundo era atendido

No mesmo copo servia

Quem uma dose bebia

Achava bem divertido

O copo todo encardido

Sem dar tempo de lavar

Era um só pra despachar

A freguesia todinha

Ou todo mundo que vinha

Ele tinha que agradar

09

Usava para lavar

Uma bacia de estanho

E ninguém achava estranho

Toda água sem trocar

Que passava a engrossar

Lá no fundo da bacia

A moçada que bebia

Mais feliz inda ficava

Cada rodízio que dava

Renovava a alegria

10

Todo dia que queria

Botava a sela no jegue

A historia que se segue

Era a mesma que seguia

Pois na madrugada fria

Forrava a estopa na sela

Depois assentava nela

E o jeguim no galope

Comprava inté envelope

Caneta, lápis, tigela,

11

Fumo de rolo, panela

E um rosário de coco,

De catolé seco e oco,

Para chá cravo e canela

Cachimbo, fumo, gamela

E cigarro desfiado

Esmalte bem encarnado

Um batom da mesma cor,

Presente para o amor

Também era apaixonado

12

O bodegueiro animado

Enchia o balcão feliz

Tinha lambú, codorniz,

Carne fresca pra guisado,

Foice, anzol e machado,

Vara de pesca e a linha,

Facão, faca e bainha,

Enxada, incho e enchadeco,

Boneca, roupa e boneco,

Jabá, salame e sardinha.

13

Pendurada numa linha

Numa taba bem erguido,

Lá encima protegido

Contrariando a festinha

Do nova-ceita que vinha

Bem sutil pelo telhado

Tinha um cambito emborcado

Uma cuia protegendo

E o roedor se roendo

No cabide improvisado

14

Café cru ou bem torrado,

Bolacha doce e salgada,

Cebola, sal e cocada,

Um pãozinho bem torrado

Por uma tira amarrado,

Levado de forma estranha

Pendurado ia na manha

Por um papel de embrulho

Recebendo água e entulho

Que a japonesa apanha

15

Tinha chinelo e banha,

Quebra-queixo e margarina,

Querosene e creolina,

Amendoim e castanha,

Na época inté pamonha,

Era um minúsculo bazar

Prego de ripa e caibar,

Pavio e o candeeiro,

Funil, fósforo, cinzeiro.

E agulha pra costurar,

16

Pneu e câmara de ar,

Rolimã, cola e remendo,

E um cafezinho fervendo

Ajudando a esperar

Que era mode relaxar

Enquanto era atendido

Festejos bem escondido!

Corda inté de caruá,

Martelo, marreta e pá,

De biscoito bem sortido

17

Queijo de coalho fedido,

De manteiga, bacalhau,

Maizena pra o mingau

Pro mininim desnutrido,

Enxofre pra o estampido,

No festejar da roqueira,

Um pião de goiabeira,

Potassa e sabão em pó,

Penico vulgo urinó,

Cartucho e cartucheira

18

Munição e baladeira,

Espingarda lazarina

Da grossa, também da fina,

Todo tipo de peixeira,

Mandioca e macaxeira,

Arroz com casca e toicim,

De mês em mês um cupim,

Quando o marchante matava,

Do boi era o que sobrava,

Ou só vendia no fim,

19

Rapadura e alfenim

Picarete e rolimã

A carne não tinha chã

Nem tinha parte ruim,

O bucho, tripa e assim!

A feira era completa,

Na budeguinha repleta

Com tanta variada

Pertences pra toda idade

E tudo pra bicicleta

20

Inda servia de coleta,

Nem que fosse um momento,

Fazia um ajuntamento,

Tinha tudo inté atleta,

Cada dose um poeta,

Assoletrava uma loa,

De bebo ou de mulher boa!

De gado ou de encrenca,

E toda a manhã despenca,

Onde nada era atôa

21

Comprava também coroa,

Pra bicicleta e a cela,

Ferrolhos para janela,

Betume para a canoa,

Capote para a garoa,

os bobs, frisos e pentes!

Todos tipos de aguardentes,

Capilé feito na hora,

Cabresto, cia e espora,

Como tudo pra presentes!

22

Comprimidos pra os doentes,

Folhas pra tudo que é chá,

Casca de puro juá

O socorro pra os dentes,

Melhoral pra os inocentes

Mel de abelha verdadeira,

Quina-quina e cidreira,

Todo tipo de cachete,

Trinco, pincem, canivete,

Quichute conga e chuteira

23

Meia, meião e meeira,

Solda-caustica e sabão,

Sabão feito de pião,

O macarrão de cadeira,

Ovos só de capoeira,

Cafés crus e granulado,

Que em casa era torrado,

Num caco com raspadura,

Todo tipo de mistura,

E até um fato arrastado!

24

Carrapeta e cadeado,

Canarinho era a bola,

Apragata inté de sola,

Chumbo grosso pra veado,

Torta pura paro o gado,

Um armador para a rede,

Um relógio de parede,

Língua de sogra o biscoito,

Uma esteira para o coito,

Refresco pra matar sede!

25

Um sinucão pano verde!

Radio de pilha pra tenda,

Incho e chave de fenda,

Macaco para mecêde!

Não vendo dizia quêde;

Um potinho de rapé,

Era o matuto em pé,

Bem por fora do balcão,

Gostando da diversão,

E enchendo a cara de mé!

26

Quissuque: o capilé!

Num sei porque esse nome,

Tomava com mata fome,

Pra casa levava inté!

Em tudo que tinha fé,

Rosário e água benta,

Gengibre, alho e pimenta,

Pedra-une goma e massa,

Bem limpinha uma cabaça,

Maleta de ferramenta!

27

Na década de sessenta

Surgiu cavalo de aço,

Vendido no mesmo espaço

E o bodegueiro comenta;

Sapato bom da setenta!!!

Salto alto e puro couro,

Um tamanco, que tesouro!

Fazendo a propaganda

Pendurava na quitanda

Quem viveu lembra o estouro!

28

Do puro couro de touro,

Não sei se era zebu,

Um salto de mulungú!

Uns pregos da cor de ouro,

Mais voltado pra um besouro

Ressecado em calçamento!

Mais a moda do momento,

O matuto aproveitava,

Na motivação comprava,

Tinha do preto e cinzento.

29

E naquele ajuntamento,

Só da paz e sem desfeitas

Que depois das compras feitas,

Marchava para o jumento,

Toda compra do momento,

A estopa suportava,

Depois que a boca amarrava

Dava acocho na fivela,

Tudo na lua da cela

Só de tardinha voltava.

30

Em casa quem esperava?

A família reunida...

Ansiosos por comida,

Mais um pouco desmaiava!

Na hora que o pai entrava,

Com a estopa bem cheia,

No meio da casa arreia,

Era aquela estripulia,

E a meninada comia,

As três refeições na ceia.

31

As vezes até baleia!

A cadela e eu digo em teses,

Que sempre comia fezes,

Pois ração era sereia,

Saia no grito e na peia,

De tato esgurejar

Mas sempre vinha a sobrar,

Qualquer resto de comida,

E a cachorrinha sofrida,

Engolia sem mastigar.

32

Sou feliz por recordar,

Resumindo nessa cena,

Não vejo lugar pra pena,

Te sofro por invejar!!

...Ha se pudesse voltar!!

Aquela antiga era,

Eu moraria na tapera,

Dispensava a pronta entrega!

Só compraria na bodega,

A companheira sincera.

33

Na lembrança eu quisera,

Matar toda essa saudade,

Na bodega de verdade,

Que a imaginação venera,

Tudo em mim se acelera,

Na doce recordação!

Na falha meditação!

Escrevi o que lembrei,

O bom é que recordei,

Grande HONRA do sertão!!

Jailton Antas
Enviado por Jailton Antas em 27/05/2012
Reeditado em 26/01/2020
Código do texto: T3691248
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