Boi de Carro (Final)
Confira a Primeira Parte: http://www.recantodasletras.com.br/cordel/3072711
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Com pescoço a arder
Sem ninguém lhe dar carona
E quando vem a inflamar
Usam óleo de mamona
Que a dor nada alivia
Somente a pele amacia
Para a canga pesadona
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O sofrer não vem à tona
Pois a ninguém interessa
Quando vai ficando velho
Até ao seu dono estressa
Sai da linha do desprezo
Só avaliam seu peso
A onde o valor começa
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Daí seu dono tem pressa
Dá comida e sombra fria
O boi velho tá cansado
Sem vigor ou serventia
O carinho dura pôco
E a pausa do sufôco
Se resume em covardia
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O parceiro e a harmonia
Já se vai dando um fim
Cada um vai pro seu lado
Que seja bom ou ruim
Antes encangava os bois
Findando separa os dois
Ser boi de carro é assim.
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Quem merecia um jardim
Pra descansar da idade
Dão ração pra engordar
Num gesto de piedade
Com marcas da trajetória
Vai se indo a sua gloria
Com pesos da crueldade
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Seu couro sem qualidade
Joelhos com peladura
Com pescoços calejados
Daquela canga tão dura
Costelas cheia de catombo
Com marcas vista no lombo
Sem avalia de bravura
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Pra descer à sepultura
Tem que a cobra lhe morder
Ou a doença da ponta
Se vier a acontecer
Se não morrer de repente
Vai ser comida da gente
Sem poder se defender
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Pós o dono lhe vender
Vai seguir a passos lentos
Deixa o pacato curral
Onde foi seus aposentos
E segue o triste destino
Que herdou desde menino
Findar em braços sangrentos
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Já se findando os tormentos
Ele ainda corre a vista
Procurando ver por perto
Seu dono ou manobrista
Mas ninguém lhe aparece
Sem direito a uma prece
Prossegue baixando a crista
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Na estrada de chão ou pista
Chegando lá enfadado
E percebe algo estranho
Curral diferenciado
Vendo um povo diferente
E um cheiro não atraente
Mas permanece calado
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Bem cedo escuta o brado
Bem antes de o sol nascer
Na porteira ver seu dono
Se alegra ao perceber
Lentamente remoendo
Pra si mesmo vai dizendo
O meu dono veio me ver
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Escuta uma voz dizer
Bem forte e arrogante
O senhor chegou na hora
Dessa matança brilhante
Se veio para assistir
E o peso conferir
Espere só um instante
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Nessa hora os dois de fronte
Fortes olhares se cruzam
Mas seu dono baixa a vista
As recordações lhe acusam
Vendo de lado a balança
O boi perde a confiança
E da sua calma abusam
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As ferramentas que usam
Colocam ao seu redó
Machado cutelo e faca
E quem age sem ter dó
No olhar não ver mais nada
Sente a ultima pancada
E morre somente só
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É um herói virando pó
Sendo devera esquecido
Pode ainda ser lembrado
Mais nunca compreendido
Nunca foi recompensado
Resta e canga corro e arado
E o resto foi consumido
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Se fosse fazer pedido
Nunca seria castrado
Sempre teria uma dama
Nunca dormia apartado
Fazia todo serviço
Cumpria seu compromisso
E vivia apaixonado
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Puxava carro ou arado
Com mais vigor e coragem
Fazia filhos e filhas
Que seguissem a linhagem
Era um macho verdadeiro
Trabalhava o dia inteiro
Sem se cansar em viagem
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E fazia traquinagem
Como qualquer um machão
Cobria todas as fêmeas
Se precisasse uma serão
Fazia sem reclamar
Mostrando que pra amar
Independe de profissão
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Inté pedia compaixão
Pra folgar em feriados
Trabalhar só oito horas
Como faz os empregados
Sem queixumes viveria
Satisfeito morreria
Como os remunerados
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Dava exemplos aos viciados
Os toros reprodutores
Que come dorme e só cruzam
E nada são devedores
Mudam sempre de costela
Parece ator de novela
Orgulhando seus senhores
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Pra eles só restam dores
Muito massacre e castigo
É companheiro em trabalho
Mais não chega ser amigo
Boi de carro é pra sofrer
E sofre até morrer
Como se fosse inimigo
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Já registro nesse artigo
Quem vivo sofre demais
A história, a mais triste,
Suportando temporais
Massacrado em longo prazo
Num destino, seu descaso!
Herdado dos encestais
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Jaz então como mortais
A tumba nem por herança
Inesquecíveis não são
Lembrados só na lembrança
Túmulos não se conferem
Os homens é quem não querem
Negando com a matança