Ritual de Passagem
“Não tenho como parar os pensamentos que invadem-me como relâmpagos nesta que sei ser a minha derradeira hora”.
Desde que cheguei há seis meses neste asilo como assistente social voluntário, observo Clarice. Aos 93 anos, ainda notadamente lúcida, sempre me pareceu estar distante daqui, com seus olhos perdidos no nada, de um brilho embaçado a fitar uma outra realidade qualquer, bem longe dos flamboyants que fazem da Casa de Repouso Santa Clara um lugar privilegiado.
Apesar das nossas conversas terem se resumido a interrogatórios despretensiosos da minha parte e a respostas monossilábicas da sua, ela parecia ter confiança em mim. Isso porque com os demais idosos e funcionários do asilo, Clarice mantinha uma cordialidade formal, reforçada por um olhar condescendente e um silêncio quase absoluto. Negava-se educadamente a participar das atividades em grupo, preferindo estar só, sentada em um dos bancos de jardim ou junto à janela do seu quarto, com um livro à mão – talvez o maior companheiro de toda sua vida – e acompanhada de uma espécie de bloco de anotações, com um lápis ao lado. A frase que citei no início eu encontrei nas primeiras linhas da primeira página daquele bloco, usado por ela como um diário. Seria uma prática comum se ele não tivesse sido iniciado há cerca de um mês apenas, como se fosse um diário de morte.
Quando a vi pela primeira vez percebi tratar-se de um lobo solitário, de uma solidão antiga e impenetrável. Foi deixada na Casa de Repouso por uma sobrinha há mais de cinco anos, a mesma que paga regularmente suas despesas, mas que nunca dignou-se a visitá-la desde que a trouxe. Em sua ficha consta que nunca se casou e, com o tempo, teve que sair de sua própria casa, disputada por herdeiros – os mesmos que a receberam para, em seguida, a deixarem aqui. Clarice pouco saía de seu quarto, a não ser para as refeições regulares, às quais faltava com frequência. Me intrigava nela uma serenidade que parecia não lhe caber; um rosto de expressão opaca e uma altivez que contrariava seu estado de abandono afetivo.
É bem provável que o momento de sua morte, três dias atrás, possa ter sido escolhido ou, mais até, auto-programado. Isso pode ser interpretado como misticismo ingênuo da minha parte, mas tenho motivos para não duvidar. Neste asilo o rígido horário dos remédios é levado à risca. Assim, às 17 horas em ponto, Irmã Verônica levou a segunda dose do medicamento para sua doença cardíaca. No relógio do criado-mudo de seu quarto os ponteiros pararam, sem motivo aparente, às 16h56min, exatamente a mesma hora registrada por Clarice em seu diário, após ter escrito estas que seriam suas últimas palavras:
“Por que, Dama da Sombra, tardastes tanto a chegar? A eternidade parecia querer-me sua mais fiel escudeira e por toda minha juventude acreditei realmente poder ser. Incontáveis vezes tentei enganar-me fingindo não existires, embora eu tenha passeado pela minha própria existência absolutamente entediada com qualquer coisa que manifestasse vida. Apesar de sempre teres sido óbvia para mim, decidi deliberadamente não prestar-te atenção. Sei bem que não há nada mais que eu possa fazer para reverter tamanha falta de zelo, a não ser levar comigo o acre sabor desta tardia verdade: a de que tua dialética é afirmar, de diversas formas, o teu oposto. A nós nos cabe vivenciar esse tosco paradoxo, tarefa que normalmente abandonamos na primeira infância. E mesmo quando o intuímos em outras fases da vida, continuamos caminheiros de caminhos tortos. Resta-me o consolo de ter finalmente compreendido essa equação simples, que agora torna-se o mantra que entoarei nesse ritual de passagem ou, quiçá, num possível retorno.”