A sombra que me transfigura

Hoje amanheci quente, mas com minha alma nublada. Agora chovo com cheiro de terra molhada. E mudo, e molho. Eu vento. Sou a gota, o mormaço. Há tantos de mim para uma só manhã. Mais tarde serei escuro, lua cheia, céu confuso.

Há tantos de mim e tantos climas internos. Há verdades ilusórias que me parecem infernos.

Sento à mesa, eu e a minha sombra. Ela me diz:

Tu és um abismo que não me olha de volta!

Exagero!! - Exclamo à sombra.

Não há depois num amanhã pretérito. Escrevo confuso, não há entendedores suficientes. Sou a boca fechada, exceto aos ouvidos da sabedoria mórbida. Tenho os ouvidos abertos aos mestres subterrâneos que sem subterfúgios elidem atrozes os sórdidos de coração.

Não há luz que me conforte, meus olhos doem. Sinto a mão gélida segurando meu ombro. Meu encosto é lírico, meu obsessor é poeta. Aprisiono-o a mim. Sua magia corre em minhas entranhas.

Me liberte!! - Suplica inquieto, o desgraçado perdido.

Respondo:

Quieto, verme! Emprestei meu corpo no momento do teu desespero. Me aposso de ti. Essa é a usura que me deve!

Não há piedade nos aforismos que cadencio. Não há culpa diante da ensandecida vida.

Crepita minha alma sorrateira. Alimento meu poder de vaidade. Construo meu reino no inferno dessa vida para ser o diabo do meu próprio escuro imerso em deteriorada verdade.

Me olho no espelho e ele me diz:

O que fizeste por mim hoje?

A serpente entrelaça em minhas mãos, as chamas aquecem minha cintura. Desço as escadas do paraíso anunciando um novo mundo.

Ele enlouqueceu! - murmuram os vermes enquanto decompõem um corpo que já não é mais meu.