NOVA VIDA
Naquela hora soturna, em que o vento bailava sacudindo as samambaias, na sua maioria secas, penduradas na varanda, minh’alma soluçava de saudade por tua ausência. Foram anos sem teu amor. A dor cruciante não dava trégua aos meus dias que se esvaíam desesperançosos. Meus cabelos brancos e mal cuidados denunciavam meu sofrimento. A angústia terrível sufocava a dor que eu gostava de sentir como se saboreasse uma iguaria pela última vez.
A casa era pendurada no morro, rodeada de troncos frondosos e centenários. Ela me via com seus olhos miúdos reprovando minha falta de amor próprio. Não restava mais ninguém, todos se haviam ido, um após o outro e por último, meu grande e único amor.
Sozinha contemplava o longíncuo horizonte aos fins de tarde sentada na varanda tricotando sem parar. Quando a lã acabava, desmanchava cada ponto e começava outra vez. Era a forma de me sentir viva.
Às vezes, dormia o dia inteiro, outras, ficava semana inteira insone. Aí o tricô rendia lindos suéteres para a família. Mantas em ponto de trança que eu estendia nas camas como se fossem cobrir as minhas crianças com elas, mas, elas só existiam na minha imaginação. Nesses momentos conversava e ria como se algum dia elas tivessem existido, contava histórias que a minha avó me ensinou. Perdia-me no tempo da ilusão doentia que me servia de vida.
Em meio ao canto triste dos pássaros que me faziam companhia, ousava murmurar uma cantiga de amor que era repetida pelos sanhaços em seus voos rasantes todas as tardes. A varanda vivia repleta de folhas secas, há muito acumuladas, assim como meu coração amargurado, desvairado e sujo de tanta loucura.
Os lírios e as avencas estavam secos necessitando de água.
Naquela noite choveu muito. Dormi sobre o suéter que tricotava em cima do tapete da sala. Acordei na madrugada com muito frio. Percebi que a chuva não havia parado, Então, levantei e pus todas as samambaias na chuva, depois, fui para a cama. Acordei tarde com a algazarra dos passarinhos que se deliciavam com as bananas que eu havia deixado na fruteira sobre a mesa.
Nessa manhã passei um café. Fi-lo cantarolando como fazia nos tempos da casa cheia. Nessa hora reparei que calçava meias vermelhas que iam até os joelhos e fazia dias que estava com elas. A solidão fez de mim alguém sem vontade de viver. Não me incomodava com o cheiro de suor, passava dias sem tomar banho. Comia qualquer coisa para despistar a fome.
Desde que ele partiu não troquei mais as roupas de cama, era o jeito que eu encontrava de sentir seu cheiro.
Desmanchei o suéter inteiro, tremia enquanto desfazia cada ponto. Desmanchava para fazer sangrar minha alma por inteira e vê escorrer o sangue, no ladrilho de pedras até o ralo no fim da calçada.
Depois disso, chorava por horas.
Estava bastante magra e desbotada. Os cabelos passavam semanas sem serem penteados. Era uma viva morta.
Essa mania de tricotar, deixou de ser normal e virou loucura, aliás, deram me esse apelido: A louca.
A louca que vegetava no alto do morro, envolta pela vegetação e pela floresta intocada.
De lá eu conseguia avistar grande parte dos edifícios construídos na orla marítima. Também conseguia visualizar o Cristo Redentor e as aeronaves que o contornavam ao logo dos dias para aterrissarem no Santos Dumont.
Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, desde tempos remotos. Era esse o meu tempo.
Não sentia um pingo de vontade de estar na cidade, por isso nunca ia. Comia os vegetais colhidos ao redor da casa. Quando em mim havia o mínimo de lucidez, replantava alguma coisa. Era essa minha vida.
Há quanto tempo vivia assim? Sinceramente não sabia. Raramente lembrava de como eu era quando via algumas fotos antigas que haviam numa caixa de sapatos empoeirada e com teias de aranhas.
Agora, meus cabelos desleixados, brancos, compridos e despontados, deixavam-me velha, sem contar os dentes careados, e encardidos. Fazia tempo não me olhava no espelho pequeno que ficava em cima da velha cômoda de jacarandá que havia sido da minha avó. Aliás, na casa não tinha nada de interessante, os móveis antigos e mal cuidados, a casa suja, repleta de teias de aranha. A varanda um mar de folhas secas trazidas pelo vento. A fogão, daqueles à lenha, com forno e trempes de ferro, há anos não recebia uma limpeza.
Nesse dia, após o café que coei sem a menor vontade, pensei em ir à cidade, de repente comprar alguma coisa nova que pudesse me deixar mais animada. Abri o armário e percebi que estava desprovida de qualquer vestuário que pudesse sair de casa. Lembrei que já fazia mais de cinco anos que sequer ia à calçada.
Sobre o armário estava a viola que meu amado, que antes de partir tocava todas as noites. Ele era bom nas cordas, dedilhava-as como ninguém. Eu, sabia alguns acordes, tinha aprendido de ouvido, mas, já fazia tanto tempo! Peguei-o e coloquei sobre a mesa e fui buscar um pano úmido para retirar a sujeira acumulada sobre ele. Depois de limpá-lo, levei-o para a varanda e automaticamente comecei a tocar. Não sabia nada de novo. Todas as canções eram antigas. Tentei lembrar de algumas e fui murmurando a letra, enquanto meus dedos desengonçados passeavam pelas cordas. Notei que não tinha esquecido. Pensei que talvez pudesse melhorar a agilidade das minhas mãos, assim como fazia no tricô.
Deixei a viola sobre a mesa e abri o velho baú aos pés da cama. Nele existia muitas coisas que lembravam a família ida. Encontrei um tecido de fundo branco, florido em diversas cores. Resolvi costurar um vestido para poder ir à cidade.
A máquina de costura ficava na sala. Estava muito suja, precisava de uma limpeza profunda e lubrificação. Passei umas duas horas nessa tarefa. Depois, abri o tecido sobre a mesa, tracei-o, assim como fazia em tempos remotos. Sentei para costurá-lo. A coordenação motora para a costura, também estava péssima. Mas, eu precisava ter algo para vestir, se não, não teria como ir à cidade.
Provei o vestido. Ficou horrível, porque em mim não havia nada de atrativo. Olhei-me no espelho, parecia mais uma bruxa. Dos dentes só restavam as raízes. Os cabelos cheios de falhas e brancos. Fiz duas tranças que ficaram iguais a um rabo de rato de tão finas. Calcei os chinelos de couro e fui.
Ao chegar à cidade, vi qu não era mais a mesma. Havia se transformado numa imensa metrópole. Não sabia nem como andar e chegar ao meu destino que era o banco, onde eu tinha conta.
Depois de muito andar e já estar exausta, avistei-o. Para entrar foi uma dificuldade por causa do saco de abóboras que levei para vender. Eu entrava e o saco não passava na porta. Foi um custo, até porque o guarda nem queria me deixar entrar, dada à minha falta de compostura. Realmente, não sabia mais me portar diante das pessoas. Mostrei a ele meu cartão que já estava vencido a uns dois anos. Enfim, entrei e me sentei para ser recebida pelo gerente. O próprio guarda me deu uma senha para pessoas especiais. Logo fui chamada. Mostrei a ele o cartão e minha identificação.
Quando ele olhou minha conta, arregalou os olhos e acho que eu também, mesmo não sabendo o motivo.
Ele me disse que teria que pedir outro cartão para mim, pois o meu já não valia de nada e minha conta tinha um bom dinheiro. Dinheiro esse que ele não se deu ao trabalho de me dizer quanto era. Falou que eu retornasse em duas semanas para retirar o cartão e ver o que fazer com o dinheiro.
Um pouco desapontada, percebi que tinha que vender as abóboras se quisesse comprar alguma coisa na cidade.
Então, sai do banco oferecendo as abóboras na porta das casas. Vendi todas. Até que não demorou.
Com o dinheiro comprei algumas coisinhas de primeiras necessidades e voltei. Antes de sair da cidade reparei que havia uma feira onde várias mulheres vendiam artesanato. Eram construções de roupas, toalhas e trilhos de mesa, jaquetas de tricô, tipo as que eu tecia e desmanchava, durante todos os anos que fiquei enclausurada.
Estava com tanta fome que sentei várias vezes no caminho para descansar. Sentia muita fraqueza. Enquanto descansava fiquei pensando que, de repente eu pudesse arrumar os dentes, talvez, ainda tivesse jeito. Poderia cortar o cabelo, mudar o visual, comprar lãs novas e linhas e mostrar àquelas mulheres as minhas produções. Quem sabe pudesse voltar à uma vida normal?
Cheguei em casa e fui dormir. Não tinha forças para mais nada. Quando acordei já era noite. Nem levantei e nada comi, virei para o outro lado e continuei dormindo porque o céu me esperava...
Seria inútil para a minha alma, depois de tanto tempo, tentar retornar à vida. Nenhum dinheiro, corte de cabelo, ou, arrumação de dentes, fariam com que pudesse recomeçar. Minha alma já caminhava para o outro lado, minha felicidade já me esperava em outra vida. Os anos de solidão sem sair de casa, serviram para a remissão mais dura que pudesse haver para alguém mortal. Do outro lado da vida, meu grande amor esperava-me, ansioso. O melhor de tudo é que pude acordar, depois de não sei quanto tempo, na mais radiante luz daquele que na humildade viveu para ganhar o céu.