O TEMPO DA MEMÓRIA E A POEIRA DAS ESTRELAS
Por Leont Etiel
O seu percurso era movido a passos ao modo de uma deriva. Despretensiosa. À margem esquerda da autoestrada, avistava um pequeno desvio sinalizado com a expressão De Senectude. Ao fundo, acidentadas serras que, abrigando um conjunto de montanhas dentro de outro conjunto, formavam uma cordilheira. Sucedeu então que Ravi Sharma deu-se conta do ‘tempo da memória’.
Pensou na dupla face desta, conforme há muito tempo havia observado em um manuscrito empoeirado originário de Budapeste: base para orientação de ações individuais e forma inconscientemente comprimida, mas intensa, algo como um dispositivo condensador de recordações, como a sentimentalidade.
Chega um momento em que a vida chama às pessoas ao espelho. E requer do ser humano que seja modesto. Ele sabe como foram as aventuras que empreendeu, pode conhecer da riqueza e da pobreza, mas nada já lhe importa. É como se voltasse a ser uma criança recém-nascida. Se conserva um pouco de lucidez, geralmente o remédio que tem à mão é olhar para o passado, observando o que viveu. Por vezes, a infância oferece a impressão de um período maravilhoso, sob a perspectiva de múltiplas vidas vividas ao mesmo tempo. Todas as manhãs, afinal, as crianças começam o seu caminho sem inquietude. Brilhe o sol ou esteja turvo o céu, elas seguem adiante.
De Senectude, por Bobbio, conjecturou Ravi. Assim é. Se o mundo do futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do passado é aquele no qual, recorrendo às nossas lembranças, podemos buscar refúgio interno, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele, no mundo do passado, reconstruir nossa identidade. Um mundo que se formou e se revelou na série ininterrupta de nossos actos durante a vida, encadeados uns aos outros, um mundo que nos julgou, nos absolveu e nos condenou para depois, uma vez cumprido o percurso de nossa vida, tentarmos fazer o balanço final. É preciso apressar o passo, pois quem está na senectude vive de lembranças e em função delas; contudo, sua memória torna-se cada vez mais frágil. O tempo da memória emerge e deambula numa autoestrada inversa à do tempo real, significando isto afirmar que quanto mais vivas são as lembranças que surgem das recordações, mais é remoto o tempo em que os factos tiveram lugar. Cumpre dizer, no entanto, que o resíduo, ou o que se logra desencavar desse poço sem fundo, é apenas uma ínfima parcela da história de vida individual. Para se poder continuar, escavar é uma condição da senectude. Cada vulto, gesto, palavra ou canção que parecia se haver perdido para sempre, uma vez reencontrado, ajuda a continuar vivendo.
Desse ponto de vista, foi que, surrealisticamente, ao atenuar o passo da deriva, após tomar a via esquerda da autoestrada, Ravi Sharma se deu conta que, sobretudo na última etapa da existência, a soma total dos momentos de sonho puro - dos períodos em que o ser humano dorme – não é inferior a soma dos momentos da realidade, isto é, dos momentos de vigília. O encadeamento de raciocínio seguinte logo se apresentou: no estado de vigília, sendo o mesmo que dizer quando o ser humano está acordado, ele se converte em joguete da sua memória, que se compraz em lembrar circunstâncias do sonho. Entre intervalos do dormir e do acordar, pode suceder até mesmo de o sonho da última noite ser uma continuação do sonho da noite precedente, e continuar na noite seguinte.
Tendo chegado ao fim da margem esquerda da autoestrada, que, por sua vez, dava acesso a uma via íngreme de pouco ou nenhum pronúncio, Ravi deteve-se a pensar no sentido de cada instante antes que aquele outro instante, o derradeiro, se apresente como momento do cessar. Nous arrivons tout nouveaux aux divers âges de la vie et nous y manquons souvent d'expérience malgré le nombre de anées. É bem provável, pensou o introspectivo caminhante, que a chegada novo às idades da vida só se torne existência pela dimensão do vivido. Perfilando o que constituirá posteriormente o terreno de incursão da memória. Com esta inferência configurada mentalmente, Ravi Sharma olhou para o lento vagar das nuvens e, ato contínuo, fez riscos no chão. Os riscos eram quase imperceptíveis, mas podia-se ver que articulavam palavras. Três se apresentavam de forma mais visível: tempo, vivência e memória.
O dia já estava perto de se fazer noite, e não demoraria muito para os sonhos diurnos serem substituídos pelos sonhos noturnos. Tudo disso, compreendeu Ravi, dentro de um sonho maior, abarcando esses dois tipos de sonho, quer dizer, o sonho que é a própria vida como resultado da matéria em movimento, indo de um degrau a outro na escala da complexidade cósmica, fazendo-nos existir como seres decorrentes da poeira das estrelas. O tempo da memória apenas reflete a vida como um vislumbre passageiro das maravilhas que existem no universo.
Pensou na dupla face desta, conforme há muito tempo havia observado em um manuscrito empoeirado originário de Budapeste: base para orientação de ações individuais e forma inconscientemente comprimida, mas intensa, algo como um dispositivo condensador de recordações, como a sentimentalidade.
Chega um momento em que a vida chama às pessoas ao espelho. E requer do ser humano que seja modesto. Ele sabe como foram as aventuras que empreendeu, pode conhecer da riqueza e da pobreza, mas nada já lhe importa. É como se voltasse a ser uma criança recém-nascida. Se conserva um pouco de lucidez, geralmente o remédio que tem à mão é olhar para o passado, observando o que viveu. Por vezes, a infância oferece a impressão de um período maravilhoso, sob a perspectiva de múltiplas vidas vividas ao mesmo tempo. Todas as manhãs, afinal, as crianças começam o seu caminho sem inquietude. Brilhe o sol ou esteja turvo o céu, elas seguem adiante.
De Senectude, por Bobbio, conjecturou Ravi. Assim é. Se o mundo do futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do passado é aquele no qual, recorrendo às nossas lembranças, podemos buscar refúgio interno, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele, no mundo do passado, reconstruir nossa identidade. Um mundo que se formou e se revelou na série ininterrupta de nossos actos durante a vida, encadeados uns aos outros, um mundo que nos julgou, nos absolveu e nos condenou para depois, uma vez cumprido o percurso de nossa vida, tentarmos fazer o balanço final. É preciso apressar o passo, pois quem está na senectude vive de lembranças e em função delas; contudo, sua memória torna-se cada vez mais frágil. O tempo da memória emerge e deambula numa autoestrada inversa à do tempo real, significando isto afirmar que quanto mais vivas são as lembranças que surgem das recordações, mais é remoto o tempo em que os factos tiveram lugar. Cumpre dizer, no entanto, que o resíduo, ou o que se logra desencavar desse poço sem fundo, é apenas uma ínfima parcela da história de vida individual. Para se poder continuar, escavar é uma condição da senectude. Cada vulto, gesto, palavra ou canção que parecia se haver perdido para sempre, uma vez reencontrado, ajuda a continuar vivendo.
Desse ponto de vista, foi que, surrealisticamente, ao atenuar o passo da deriva, após tomar a via esquerda da autoestrada, Ravi Sharma se deu conta que, sobretudo na última etapa da existência, a soma total dos momentos de sonho puro - dos períodos em que o ser humano dorme – não é inferior a soma dos momentos da realidade, isto é, dos momentos de vigília. O encadeamento de raciocínio seguinte logo se apresentou: no estado de vigília, sendo o mesmo que dizer quando o ser humano está acordado, ele se converte em joguete da sua memória, que se compraz em lembrar circunstâncias do sonho. Entre intervalos do dormir e do acordar, pode suceder até mesmo de o sonho da última noite ser uma continuação do sonho da noite precedente, e continuar na noite seguinte.
Tendo chegado ao fim da margem esquerda da autoestrada, que, por sua vez, dava acesso a uma via íngreme de pouco ou nenhum pronúncio, Ravi deteve-se a pensar no sentido de cada instante antes que aquele outro instante, o derradeiro, se apresente como momento do cessar. Nous arrivons tout nouveaux aux divers âges de la vie et nous y manquons souvent d'expérience malgré le nombre de anées. É bem provável, pensou o introspectivo caminhante, que a chegada novo às idades da vida só se torne existência pela dimensão do vivido. Perfilando o que constituirá posteriormente o terreno de incursão da memória. Com esta inferência configurada mentalmente, Ravi Sharma olhou para o lento vagar das nuvens e, ato contínuo, fez riscos no chão. Os riscos eram quase imperceptíveis, mas podia-se ver que articulavam palavras. Três se apresentavam de forma mais visível: tempo, vivência e memória.
O dia já estava perto de se fazer noite, e não demoraria muito para os sonhos diurnos serem substituídos pelos sonhos noturnos. Tudo disso, compreendeu Ravi, dentro de um sonho maior, abarcando esses dois tipos de sonho, quer dizer, o sonho que é a própria vida como resultado da matéria em movimento, indo de um degrau a outro na escala da complexidade cósmica, fazendo-nos existir como seres decorrentes da poeira das estrelas. O tempo da memória apenas reflete a vida como um vislumbre passageiro das maravilhas que existem no universo.