Suícidio

“Mesmo acreditando que tenha mais a ser feito nessa vida, chego ao ápice de minha existência e sou obrigada a tomar essa decisão, para muitos covarde para outros extrema e a alguns corajosa! Não importa a opinião apenas meu gesto... Peço desculpas a quem sabe bem por fazer isso, mas é o melhor!”

Em 1988 fiz uma cópia desse texto, um bilhete de despedida de uma suicida, guardando-o com as demais tralhas do passado junto a estante na sala de escritório do lado posto a sala de escrever, junto à sala de estar com a lareira. Na verdade uma sala grande com os três ambientes. Não possuo um sistema do que quero escrever ou do que realmente vou colocar no papel, nem mesmo à realidade dos fatos ou ficção, como que ao começar não sou mais eu, porém um escritor desconhecido... Nessa solidão clausurada posso ser livre para tudo, do falar sozinho, às paredes, a dançar e mesmo ficar nú pela casa. O dia começou fresco nesse outono, nesse dia de abril e segurava a caneca de café entre as mãos quando observei os livros na estante, relanceando sem fixar em nenhum passando de Monteiro Lobato, Dante Alighieri, Cervantes, Kama Sutra, Kardec, Paulo Coelho, Castaneda, Machado de Assis, Adelaide Carraro, a Bíblia Católica, Rubens Paiva, Poe, H.G. Wells, Descartes... Alguns gibis da Walt Disney, de terror, eróticos... Coleção Vagalume, alguns de bolso da Ediouro com Hélio do Soveral... Dentre os diversos títulos colecionado durante os anos pastas com papeis avulsos sem nexo na colocação nas prateleiras. Uma chamou a minha atenção nessa manhã por ser de cor branca amarelada pelo tempo. Tirando-a de seu repouso abri a esmo e encontrei essa cópia de bilhete... Recordei daquela tarde de sábado quando fui chamado em minha casa pelos policiais da Incorporação Militar para atender um caso de suicídio.

Para precisar datas preciso remexer em algumas caixas que guardo cópias de relatórios dos meus trabalho nessa minha eterna obsessão de organizar e manter arquivos de tudo. Todavia desisto disso por não achar necessário. Foi em um sábado do ano de 88. Uma tarde tranquila sem nada de extraordinário ou incomum. Posso afirmar que um dia perdido na escala do tempo. Não há pessoas que se lembraria dessa data a trinta anos atrás... Só mesmo um desocupado como eu para recordar e criar esse vínculo com o presente...

Fui de carona com os policiais à delegacia onde transformei do cidadão comum ao policial judiciário. Alguns minutos depois estacionava a viatura defronte a residência dos fatos onde duas viaturas da Polícia Militar e uma Caravan da funerária já estavam. O fato curioso dessa ocorrência foi a ausência de curiosos fossem dos vizinhos fossem dos transeuntes. Qual algo banal e comum a morte daquela mulher por enforcamento não chamou a atenção, não causou estardalhaço, comoção, algum sentimento. Morava sozinha em uma casa razoavelmente grande, bem acabada, extremamente limpa e organizada, com muitos adereços e uma decoração clássica. As janelas estavam abertas, cortinas puxadas, com as portas cerradas. Constatou-se que o portão de grade achava-se destrancado e a porta da sala a qual acessava o interior com o trinco puxado lacrando-a, com que obrigava a ida à porta dos fundos, onde acessava a cozinha. Numa área coberta avistava essa porta e a de uma edícula, onde pelos vidros da porta um corpo de mulher preso a uma corda numa viga.

Sob o corpo uma cadeira caída. Claramente perceber-se-ia que a vítima subiu no assento da cadeira prendendo a corda ao pescoço e soltou-a chão provocando o espaço livre dos pés ao piso de cerâmica. Ainda alguns respingos de urina embaixo daquele inerte corpo.

“-Quem achou o corpo?” Perguntei ao Cabo PM responsável pelo atendimento.

“-Uma colega de trabalho dela... Era professora do colégio!” Respondeu olhando na prancheta. “-Regina Almeida” Completou.

Observei então uma senhora taciturna de vestido azul cobalto quase até os pés, de blusinha também em azul e cabelos esbranquiçados presos em um coque em cima da cabeça. Magra e alta.

“-Haviam combinado de irem à escola agora à tarde para prepararem uma apresentação de teatro... Chegou e como de hábito entrou vindo pelos fundos quando deparou com a amiga pendurada!” Continuou o policial fardado.

Com certeza a morte quando deparada de frente e de uma forma real, quase tateável, é diferente de quando apenas pensamos ou a temos distante. Creio que há duas linhas bem definidas nessa hora: Ausência de energia no corpo em óbito transformando-o em algo inanimado e a sensação de total impotência nessa vida, ao qual vemos que nada somos mesmo achando-nos seres todos poderosos. Confesso nessas palavras nesse instante perdido no Universo que senti atraído pela aquela suicida em virtude de sua sensualidade, a delicadeza, a linda presença dos enfeites ornando-a por inteira, dos brincos esverdeados, as duas correntes reluzentes de ouro no pescoço com a imagem de Nossa Senhora em uma e na outra uma cruz, bem visível ao colo dos seios no decote do vestido que usava de uma tonalidade avermelhada, com a cintura bem definida e corte a altura dos joelhos. Nos pés um sapato social também em vermelho escuro de salto médio. No tornozelo uma correntinha com um pingente de Golfinho azul. Percebia notoriamente as unhas feitas em um tom rosa claro, os cabelos longos com volume de cor negros devidamente penteados e com corte. Na face pálida vislumbrava-se uma pintura suave a realçar o rosto daquela jovem mulher. Olhando na identidade verifiquei sua idade de apenas 48 anos. Aproximando a ela o doce cheiro de perfume, extremamente agradável. Circundando o corpo pendurado nada de errado em sua composição de vestido, ornamentos, cabelos, sapato. Constatava que Maria Heloisa, seu nome, tinha preparado dos pés à cabeça para cometer o suicídio! Sua aparência assim dizia e o local comprovava isso. Cheguei junto aos pés e tirei um dos sapatos. Unhas perfeitas, feitas, pintadas no mesmo tom das da mão. Levemente admirei o formato perfeito do membro com um arco bem definido e apesar da situação uma maciez e cor sedutora. Sinceramente a mulher arrumou-se toda para entregar aos braços da morte, a desejando com veemência e prazer.

Durante todo o processo de averiguação das circunstâncias da morte buscou-se os motivos que a levaram a esse extremo. Nada de anormal. No exame cadavérico feito no Instituto Médico Legal, no descritivo, mais duas constatações desse anseio por parte da vitima: Suas peças intimas calcinha e soutien, novos, ambos em tom vermelho. Outra situação verificada foram as contas que Maria Heloísa mantinha em aberto, como lojas, mercearia, mercado, produtos de beleza: Todas devidamente quitadas. Verificou-se também pedido junto ao fornecimento de água e luz um pedido de corte à partir da segunda feira, dois dias após sua morte. As roupas pessoais não foram encontradas na casa, pois foram todas doadas a um asilo. Sapatos, bijuterias, perfumes e outros afins, doados para uma feira de caridade. Na sexta antes do suicídio fez a transferência de valores de sua conta corrente e da poupança para entidades de ajuda às crianças com câncer. O mais bizarro foi a constatação que já tinha sido pago todo um serviço de sepultamento com caixão, coroas e translado para uma cidade vizinha, bem como um jazigo já devidamente acertado para ser usado na segunda feira.

Literalmente falando a esse suicídio apenas faltou a vítima ter carregado o próprio caixão ao sepulcro que a encerraria da vida. Mesmo com tantos detalhes absurdos de alguém que planejou a morte o caso na segunda feira já era algo do passado, sem importância, sem lembranças. Até mesmo a única pessoa da família, uma prima, chegou a abalar-se com o crime.

Mais uma vez pequei a cópia do bilhete deixado pela Maria Heloisa e li: “Mesmo acreditando que tenha mais a ser feito nessa vida, chego ao ápice de minha existência e sou obrigada a tomar essa decisão, para muitos covarde para outros extrema e a alguns corajosa! Não importa a opinião apenas meu gesto... Peço desculpas a quem sabe bem por fazer isso, mas é o melhor!”. Não consegui chegar ao destinatário do bilhete. As colegas de escola, demais professores, vizinhos, pessoas que a conheciam, ninguém soube a quem ela referia-se. Mistério esse “Quem Sabe”.

Sentindo um pouco cansado abandonei o papel sobre a mesa olhando pela vidraça a claridade do dia que já avançava pela manhã. Cerrei as pálpebras olhando para meu interior e procurando toda a cena vivida naquele sábado... Interessante como agora percebo ao tirá-la da viga amparando seu corpo a tive em meus braços e fui tomado de uma sensação como agora sinto de leveza, alívio, de esperança. Sim, recordo ter olhado de perto seu rosto e admirado os lábios com batom vermelho claro, a boca levemente aberta e os olhos semicerrados.

Por momentos senti naquele dia com ela nos braços e sua boca tão perto da minha... Algo surrealista vendo-a abrir os olhos e sorrir tão linda, tão bela, tão deslumbrante. Sua voz cochicha algo que não entendo... Seu olhar é tão vivo ao encontrar-se com o meu e aquele castanho claro de sua íris tem brilho. Percebo que vai levantar-se de meus braços e abraçar-me com amor e carinho como que esta feliz e compreendeu algo que até então nunca fora possível compreender. Não sei mais se estou sonhando, tento uma visão ou realmente acontece o que não aconteceu no dia, contudo, era para acontecer... Sinto entorpecido quando de repente a caneca que tomava café caiu ao chão e fragmentou-se em pedaços, tirando-me daquele transe.

Busquei em volta apenas vendo a sala, o computador, os sofás, a lareira. Voltei à realidade. No chão os cacos e alguns respingos de café. Por mais que gostasse de explicar não conseguiria. Maria Heloísa hoje não é nem mais uma lembrança nesse Universo, porém é toda a minha essência de entendimento sobre a verdadeira razão de existirmos. Com certeza um dia reencontrarei com ela qual foi nesse breve momento e teremos a resposta que nunca será dada à raça humana quando em vida.

Oliveira de Santana
Enviado por Oliveira de Santana em 25/04/2019
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