CONTO SEGUNDO

Ao poeta.

“Foi tudo muito rápido, talvez o teu sopro alimente uma vida,”

Jorge Telles de Menezes

Conta-se de um poeta experimentar indeterminada sensação, sendo-lhe uma surpresa. Mas havia dias que não conseguia escrever. Sem saber o que lhe sucedia, sabia-se ensombrado. Disseram vozes que em outros tempos isso não representava um problema, mas o poeta naquela tarde não atendeu a dificuldade com bons olhos. A sensação era desagradável e ademais inoportuna, mas não tanto como as vozes reveladoras dessa contradição. Não sentiu exatamente o motivo. A tensão em que vivia não era apaziguadora, sobretudo porque pressupunha preocupações diárias; ainda assim, pareceu-lhe não ser a interpretação adequada. Se particularizara comportamentos, era verdade andar irritado, tanto mais porque a si atribuíra o motivo da intranquilidade e da deprimência. A dada altura percebeu o que buscava. E encetara-o de tal modo que o significado se tornara mais acutilante, criando um vazio difícil de superar e escondendo o fugaz bloqueio.

Talvez por isso o tenha associado a uma estória, perdida no tempo, que alguém lhe havia contado, na qual se narrava o destino dos homens que presumiram escolher o próprio caminho, distantes do espírito que habitava em cada um. Iludidos, quando as perceções ganharam a força da individualidade, já não sabiam retroceder à origem. E o poeta, percebendo o significado, compreendeu que a explicação era demasiadamente simplista para a contar a quem quer que fosse, pois, para acreditar nessas estórias, era necessário ter um coração de criança.

Posto que todas as narrativas orais nascem de uma estória que pode ser real, imaginária ou sobrenatural, e no fundo de uma autenticidade, uma lição às vezes escondida, também o povo acreditou na que o poeta recordara; apenas não conseguia dar voz aos pensamentos, reviver um facto, um sentimento ou uma memória esquecida. Como se não soubesse ainda falar ou não encontrasse na linguagem o dizer que não era dizível, o povo redescobriu o poder da magia encerrada nas palavras do poeta, o qual abordava pela intuição o acesso ao inominável, dando-lhe forma ao explicar o que não era fácil, criando nas gentes uma rara impressão.

Como em outras estórias, a população contava-a a partir do seu herói. A voz do povo, fiel a si própria, do poeta narrava a odisseia que se ligava ao espírito, e os cantos eram disso o testemunho. Com o decorrer dos anos, houvera alterações na narrativa. Diziam alguns que ao poeta lhe atribuíram feitos excecionais. Ainda que ele não o fizesse de um modo efectivo, decidido pela vontade, pois o acto da criação originara-se de uma ruptura nos pensamentos e afazeres quotidianos, nas suas fixações, criando então o poeta a partir da intuição uma obra. Por tal, teria evocado frequentemente a morte, e indagara-a, já que pressentira ser ela quem lhe determinava a cadência dos actos e dos

sentimentos, ainda que não tivesse o domínio pragmático que o tornasse capaz de o fazer com sobriedade.

Se há contos que provêm da tradição oral, este terá sido um deles. Na boca do povo, o poeta lobrigava, através dos anseios, o mundo mágico – o sentimento que elevava a quem o escutava na comoção da beleza. O poeta, conservando a ansiedade só para si, implodia-a no acto da criação, dirigindo-se para incognoscível a caminho da liberdade, dando às gentes a possibilidade de notar o mistério da vida na grande contradição do homem pelo medo de se libertar.

Como em todas as narrativas desta índole, esta também encerra uma sabedoria. Porventura, com o decorrer dos tempos, fragmentos de um poema ter-se-iam perdido, mas o poeta permaneceria bem vivo nas vozes das gentes.

Como em todas as tradições orais, o povo continuaria através dos tempos a contar a estória do poeta bem como a vida dos homens, numa viagem cheia de aventuras e peripécias. Nesta, o tempo elegeria o modo como o povo revelaria o extraordinário! o que o poeta intuía e não estava citado no poema, mas era tremendo pela simplicidade – cantava o que não podia ser exibível e no entanto determinava o destino dos homens.

José Pais de Carvalho
Enviado por José Pais de Carvalho em 03/02/2019
Reeditado em 12/01/2020
Código do texto: T6566233
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