CONTO QUINTO

Lembrava-se! Como poderia recordar a manhã pronunciada no desconhecido senão pelo esquecimento.

Lembrava-se de percorrer em silêncio as ruas de uma cidade a sul, imerso na recordação do mercado, do pavimento irregular da calçada, da azáfama das pessoas e das mercadorias. Lembrava-se! viajara ao encontro do ancião e encontrara-o no pátio da casa quando uma mulher de velha idade e de feições indígenas lhe abrira a porta.

É verdade que sempre se afligia quando estava diante daquela figura enigmática, e supunha que não seria diferente desta vez. Na sombra da latada esbatida sob o sol, impressionavase ao olhar a fisionomia do ancião alterada por imagens que reverberavam perdidas da antiguidade. Com respiração parca e levemente acelerada, não quis atribuir importância ao puzzle criado pelas sombras e afetado pela imaginação. Ademais, duvidava do espectro e aprazava-se por rever o anfitrião, que o abraçava com um rasgado e efusivo sorriso de boasvindas. Conversaram acerca de trivialidades, da longa viagem. Depois o diálogo contemplou outros temas, cuja razão o viajante não podia divisar. Falaram sobre o que o homem de idade indeterminada designou por domínio da consciência. Houve, adrede, um silêncio: O grande feito é atingir a liberdade total, antes de ser uma consciência desencarnada dirigindo-se para o incognoscível. Ficava a impressão de que o velho homem escolhera as palavras antes de retomar a conversa a fim de produzir uma tensão. E pousando-lhe sobre o ombro a mão, convidou-o a dar um passeio.

No caminho, o ancião observava, como se fosse a última vez, os rostos dos transeuntes e detinha-se defronte das lojas, dos candeeiros públicos, das casas. Numa alameda, atentava a cada pormenor: o reboco dos muros e das paredes, os líquenes, os tons verde-escuros, os de cor de bolor e as pedras descarnadas pelo tempo. A dado instante, dirigiu-se-lhe: … nesta cidade tudo é possível acontecer! e sorriu. Como jovem aprendiz, reconhecia aquele olhar, aquele sorriso. Inúmeras vezes, deparara-se com circunstâncias análogas. Apoderava-se dele uma estranha sensação: incorria no íntimo a certeza de acontecer algo imprevisível, e sentia-se desconfortável. Numa rua, pararam perpendicularmente a um antigo casarão. O de mais idade não deixava de olhar tudo ao redor: contemplava a araucária, os plátanos, os cedros, e deteve-se na velha nespereira com as poucas folhas que restavam, tombadas sobre si próprias como lágrimas. O jovem, para quem bastava um olhar, um sorriso ou uma palavra do decano para o estado emocional mudar radicalmente, permitiu que uma lágrima lhe escorregasse pelo rosto, e sentindo de antemão uma melancolia que o comoveu pressentiu que a imagem da velha nespereira seria apenas sua. Primeiro supôs sentir-se triste, mas de imediato compreendeu uma sensação mais profunda e distante, tão cavada quanto a solidão.

Chegados a uma praça, já sentados num banco público, o mais velho dava continuidade à frase deixada atrás: … por baixo da cidade estava uma outra de onde desapareceram os que nos sonhos acordaram numa posição para além dos limites do conhecido. Escutar tal história sobressaltava-o, e sentindo um empurrão, sem que pudesse formular alguma pergunta, viuse a entrar na igreja, e lembrava-se! já tinha estado ali em outra ocasião.

Ajoelharam-se ambos, lado a lado, num banco de madeira corrido, fronteiro ao claustro. O ancião balbuciou-lhe quaisquer palavras ininteligíveis, despertando-lhe uma recordação já perdida. Uma mulher de feições indígenas fitou-o, fazendo-lhe sinal, e ele, não pelo fulgor da juventude, deslumbrou-se: um misto de admiração e fascínio aprisionava-o, quão magnânimos eram aqueles olhos negros. No momento ficou perplexo: a mulher que lhe abrira a porta estava ali, mas não parecia a mesma. O vestido preto deixava antever a silhueta e a tez era límpida e cuidada. Aparentava ser nova. E atemorizou-se. Quis compartilhar a surpresa descrevendo um movimento com o corpo, mas o ancião desaparecera, concomitante à perda da acuidade visual.

Algo acontecera. Quando recuperou a visão estava numa igreja, numa outra igreja, quiçá num outro tempo. A decoração afigurava-se do século dezoito: o altar-mor, o deambulatório em torno dele, as pinturas do teto da nave, a talha dourada obturando o óculo da fachada com um relevo sugeriam-no. Decorria uma cerimónia religiosa, e o silêncio era total.

De temperamento suscetível, por experiências anteriores perante o desconhecido, ele sabia que facilmente oscilaria entre a confiança e o temor, e que poderia perder a razão. A luz da igreja era ambarina e ele demorou a ambientar-se. Espantou-se com as sombras, pois eram negras e profundas como nunca tinha visto, e reparou o tom de pele das criaturas ajoelhadas, singularmente pequenas. Apreensivo, tornara-se ele próprio testemunha da imaterialidade do tempo. Os entes ao redor não eram da época que atribuiu à igreja. Como poderia aquela gente orar, mover os lábios e ele não ouvir o mínimo barulho? Estranho, olhou para a direita e confrontou-se com a dita mulher. Ã! gaguejou trépido. O som exauriase em si mesmo, parecia-lhe inaudível, incumprido. O corpo teve um espasmo e os indivíduos em torno olharam-no, censurando-o. A mulher murmurou-lhe que ouvisse com todo o ser e ele assim fez, sem saber como fez. A missa estava a acabar e o movimento da multidão, sentiu-o ensurdecedor ou quem sabe se intensificado. Porventura idealizava, concluiu. A percepção aguçada deu-lhe outra indicação. Percebeu que estava a sonhar. Havia uma agudeza mais consciente do que o torpor mental sentido. Independentemente de onde estivesse ou do mundo em que estivesse, o que vivenciava era real e abarcava-o na totalidade. A mulher olhava-o, doce e intrigante, aparentava agora uns trinta anos: o mundo que apreendemos e a sua substancialidade dependem da total atenção para que exista. A posição em que se começa a sonhar espelha-se na posição em que permanece o corpo de sonho. Deste modo, deve-se sonhar que se acorda deitado exatamente na mesma posição em que se adormece, para sonhar adormecer de novo. A voz dela era cristalina,

sedutora num sentido restrito, magnetizante. Tudo o que se vê, o ambiente ao redor é a projeção da minha intenção, um sonho! Estás a viver no meu sonho. Não basta somente sonhar o objeto, é necessário visualizá-lo e trazê-lo para o sonho, materializá-lo, para se tornar real. Foi a partir deste recurso que te trouxe para o meu sonho. Foi desta maneira que, numa época longínqua à do tempo deste sonho, os antigos habitantes desapareceram da cidade, deixando somente os vestígios da sua cultura. Foi muito antes de eu existir e de existir o local onde estamos. Quando nasci, eles já eram antigos e repara como sou antiga! exclamou com malícia.

De seguida, pegou-lhe na mão e levou-o até à porta da igreja, o que o acalmou. Ao saírem, depararam-se com uma praça velha. No tempo eminente escutou-a. A praça para que estás a olhar não existe na realidade, só a poderás tornar real mediante a tua intenção. A vista dele turvou-se; focando-a, encontrava-se agora sozinho na cidade em cujo cenário se desenrolava o sonho. Na praça viu o decano sentado no banco onde estiveram antes, segurando o chapéu, enquanto um vento soprava ao redor. Um pensamento determinavalhe que tinha de deslocar os olhos para alterar a percepção. No mesmo banco, um outro homem dormitava. Embora o choque do que não podia avaliar o propulsionasse, fracionava-o luminescente, e vislumbrou a sua paridade: sentado no banco ao lado do homem que segurava o chapéu, viu-se de pé no pórtico da igreja, e assombrou-se, caindo em si.

Sentiu que tinha perdido algo significativo. Talvez alguém de quem gostasse muito, mas não conseguia recordar-se. Uma ideia como essa afigurou-se-lhe absurda. A memória atraiçoava-o de novo e sentiu um misto de saudade e medo, indecifrável. O ancião sossegou-o, pedindo-lhe para contar o que se lembrava do sonho. Lembrava-se de terem entrado na igreja e pensou: poderiam ele e o ancião acordar no mesmo instante, na mesma posição de sonho? O homem de maior idade não foi directo na resposta, disse-lhe que o acompanhara na ocasião em que se sentiu puxado por ele até ao interior da mesma. Não é possível saber como ocorre, talvez pelo desejo. Apenas acontece assim. Foi o modo como os antigos partiram em grupos. Talvez fosse decisão deles morrer em outro mundo, ou não encontraram o caminho de regresso. O fenómeno sucede conquanto paramos o diálogo interno e mudamos o foco para o que nos induz a perceções incomuns. Restava o silêncio, e lembrava-se! quem era a mulher do sonho? Por sua vez, o ancião apaziguava-lhe o temor: era o tempo de se recordar da mulher, pois iria encontrá-la uma última vez. Era antiga como ela lhe dissera. Desafiara a morte com êxito, tornando-se prisioneira da veleidade que destruiu os antigos. Dera-lhe um presente, o qual se recordaria em breve: Podemos viajar pelo desconhecido, mas temos de nos ancorar dentro dos limites do conhecido para regressarmos. Se te deslocares para outro mundo, esta cidade desaparecerá, mas irás permanecer aqui. É este o mistério que ainda não compreendeste. Romper as barreiras da percepção é entrever a eternidade. Mais cedo ou mais tarde aperceber-te-ás que cada um de nós é todas as coisas, que é isto e aquilo. Um mundo só é percetível por força do alinhamento da totalidade dos nossos feixes de luz com os correspondentes exteriores e não

apenas com partes deles. Disto depende a nossa estabilidade. Só assim um mundo se torna real, permitindo-nos então escolher onde morreremos e também como fazê-lo em consciência total. O teu trabalho será ainda tornar compreensível tudo o que está além do território onde a consciência quotidiana assenta a sua identificação, em que nenhuma dúvida possa interferir nos teus actos. Com o passar dos dias, compreenderás melhor. Darás uma coerência a tudo o que viveste e não consegues por enquanto recordar.

De repente tudo ficava claro, mas nem uma palavra conseguia articular, não tinha energia suficiente para o colocar por palavras. Compreendia que tais acontecimentos não poderiam ser recordados pela memória. Então o ancião lia-lhe o pensamento: Agora começas a compreender. O mundo dos homens é tão-somente uma visão a partir da posição do alinhamento dos feixes de luz consoante a energia que reúnam; não conseguires expressálo deve-se ao facto de não teres ainda acumulado a energia que te permita ordenar o conhecimento. E mudava de assunto: Aproxima-se o momento de eu partir, esta será a última vez que nos encontramos nesta cidade, juntos. Talvez retorne um dia, mas nunca mais voltarei aqui tal como me vês hoje.

Sentiu-se uma brisa, do outro lado da praça o velho homem acenava-lhe, despedindo-se, e surpreendeu-se: lembrava-se! o conhecimento era silencioso, uma força que não podia ser descrita, no entanto estava ali para que qualquer um a pudesse utilizar. Ainda olhou de novo para o outro lado da praça, e viu o ancião virar-se para trás sorrindo-lhe.

José Pais de Carvalho
Enviado por José Pais de Carvalho em 09/12/2018
Reeditado em 12/01/2020
Código do texto: T6522800
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