PÉROLA IRREGULAR

Antônio Francisco Lisboa, bispo na cidade de Barrueco, pequena colônia espanhola, na Itália, dormia feliz. Sua indicação para cardeal era mais do que certa, graças à construção do magnífico convento de Santa Maria Madalena.

Imponente edifício, com mais de duzentas janelas que permitiam a entrada da luz, fazendo, em alguns lugares, contraste com o restando do prédio, escuro; Quando acontecia o espetáculo do sol projetando raios de Deus, o claro e escuro emocionava e fortalecia mais ainda a fé dos que assistiam aquele espetáculo tido como divino. Acontecia, nesses momentos, sagradas reflexões. Natureza e emoção servindo a fé e a igreja.

Anteriormente uma construção pagã, em honra ao deus Dionísio, depois, uma importante loja maçônica, que durou dois séculos, transformada em biblioteca, em seguida boate, cinema pornô, finalmente, lugar de prostituição, venda e consumo de drogas. Uma igreja evangélica tentou comprar o local para construir um shopping, após batalha judicial, bispo Antônio ganhou o direito de uso do prédio; restaurou e o inaugurou como convento; nele, moças castas viveriam para a glória de Deus.

Essa vitória não passou despercebida pelo alto clero, logo seria convidado a ir ao Vaticano. Certamente seria Cardeal, quem sabe, chegaria um dia a Papa.

A insistência do telefone tocando o tira da cama; Eram 3:00 da madrugada, do outro lado a madre Plautilla Nelli:

- Bispo, pelo amor de Deus, corra pra cá, o demônio está aqui,o diabo está possuindo uma noviça!

O bispo, ainda atordoado, com dificuldade, se levanta, corpo tremendo, pois sofria de uma misteriosa doença, mal podia andar, mas era um homem determinado, desde a mocidade. Sua mente não conseguia entender o que estava acontecendo, lembrava de seus temores, conflitos na consciência e pecados não confessados, tudo ao mesmo tempo. Sentia medo do demônio e das suas acusações. Colocou na valise os instrumentos sacros: Se benzeu, rezou um pai nosso, uma ave-maria, e se dirigiu para o convento.

O imponente edifício, três quarteirões depois de sua casa, anunciava, em letras douradas: Convento Santa Maria Madalena, os números XVI a XVIII, correspondentes aos três quarteirões pertencentes ao convento certificavam presença, tempo e espaço. Parado em frente à porta, inconscientemente se benze e bate: Uma voz baixinha pergunta quem era, e ao saber que se tratava do bispo, deixa-o entrar. Medo e o terror nos olhos de todas, levado à capela, petrificou.

Em frente à cruz, totalmente despida, na ponta dos pés, quase flutuando, a noviça Artemisia Gentileschi, se contorcia em dor e desespero; O bispo conhecia sua história: Estuprada pelo vizinho, fugiu da casa dos pais; enganada por uma prima, foi levada à Inglaterra e entregue a uma quadrilha de tráfico de mulheres; submetida a inúmeros abusos, violentada de todas as formas, chegou a um estado físico deplorável: Sem dentes e quase em ossos; três anos depois, foi resgatada por uma equipe que trabalhava com escravas sexuais; pais falecidos, manifestou o desejo de servir a Deus naquele convento. Contudo, o período que passou no inferno foi tempo demais.

-Calma, minha filha- diz o bispo-Estamos aqui e vamos te ajudar, se acalme, vamos conversar.

- Eles querem me levar, bispo me ajude, eu não quero ir, eu não quero ir. Gritos e choro se misturavam. As demais rezavam. O demônio sem dúvida era o culpado. Ave-marias e pai- nossos, agora, gritados; Com o desespero da “possuída” a atmosfera era de terror.

Em mais uma tentativa, bispo Antonio segura na mão de Artemísia:

-Filha se acalme, está tudo bem, vamos te ajudar.

Tarde demais, desprende-se, corre para a escada, sai pela janela, ganha o telhado. Em prantos implora o bispo:

- Filha, venha para nós, vamos cuidar de você, eu prometo, ninguém irá te molestar, essa aqui é a casa de Deus.

Seu corpo caindo, figura da Madalena sem Cristo, apedrejada pelos homens com quem pecou. Bispo Antônio tremia dos pés à cabeça, não conseguia nem mesmo ficar em pé. O contraste era dramático demais. Freiras, imaginadas pelos homens, santificadas, Artemísia, tornada, por também, “homens”, alma atormentada; o metafórico claro e escuro onipresente.

Convento fechado, ação social inaugurada, Lar Pérola Irregular, com alojamentos para vítimas de tráfico humano, oferecendo abrigo, orientação psicológica, profissional, atendimento médico, odontológico, artes.( Artemísia era uma excelente pintora, contam). Sem mais ambições na carreira, Antônio Francisco Lisboa, carinhosamente hoje é chamado o Aleijadinho de Barrueco. Recentemente recebeu uma carta do papa, mas ele não liga mais para esses negócios eclesiásticos, o sorriso das preciosas pérolas libertas o orgulha muito mais.