Descrença (parte 1/2)
Início de expediente, mais um dia no escritório de contabilidade:
— Bom dia, o que foi “Sergião”, parece aborrecido?
— Ah, cara, é a Suzane.
— Ela tá doente?
— Sei lá, tá com umas neuras...
— Como assim?
— Ela cismou que existe um tal de “Escritor”.
— O quê?
— É... um ser superior que comanda nossas vidas.
— Ah, já sei o que é.
— Pois é, e pensando nisso ela está cheia de “não-me-toques”.
— E a coisa é séria?
— Pelo visto, sim, tá falando de casamento e tudo.
— Ah, “Sergião”, nisso ela tá certa, já passou da hora.
— Pô agora? Agora não dá, tô cheio de dívidas: aluguel, prestação do carro, faculdade, a grana tá curta.
— Vocês tão juntos há quanto tempo?
— Acho que uns cinco anos, sei lá.
— Pô, já teve tempo de sobra pra se organizar, né?
— Cara, a gente vive o dia-a-dia, quem para pra pensar no futuro? Meu futuro é só o fim do mês.
— É brabeza mesmo. Eu já ouvi falar desse Escritor, acho que é uma religião.
— Só me faltava essa agora.
— Você não acredita?
— Que as nossas vidas são regidas por um ser invisível que ninguém nunca viu e não se pode provar a existência? Cê tá de brincadeira?
— Sei lá, às vezes penso nisso.
— Eu acredito é nisso aqui, ó — Sergio amostra o livro contábil — e nos boletos que chegam lá em casa para pagar.
— Tá bom, agora dá licença que eu também tenho meus boletos, depois a gente se fala.
— Até mais tarde.
A concentração nos afazeres serve como uma bomba de escape para os problemas da vida pessoal. O senso de responsabilidade e a necessidade de executar um trabalho bem feito fazem as pessoas mudarem os focos durante o dia. Claro que cabe a cada um dimensionar como isso deve afetar ou não a produtividade.
Geralmente as pessoas tendem a separar vida pessoal e profissional, exatamente para não serem prejudicadas em suas funções.
A sociedade dependente dos recursos que adquire. Devido a alta carga de deveres, não há tempo para distrações, portanto, cada momento de descontração é supervalorizado. E as distrações distanciam o que realmente importa para a vida, afundando cada vez mais o indivíduo em um rodamoinho de superficialidade, impedindo-o de evoluir e conhecer-se.
Entretanto o surgimento de mais um dever, para quem já está sobrecarregado de deveres, se transforma em um fardo pesadíssimo, e fica ainda mais frustrante se aceitar que se trata de uma coisa facultativa ou totalmente supérflua. Depois de tantos anos vivendo de um jeito, parece sem sentido seguir regras de conduta moral religiosa, ainda mais quando o que se vê na prática são conceitos de caráter absolutamente fora da realidade.
Na hora do almoço:
— Fala “Sergião”, tudo bem?
— Oi “Marcão”, que nada, ainda na mesma, acabei de ligar pra Suzane, ela continua irredutível. Essa coisa tá me deixando louco.
— Mas o que você tem que fazer afinal?
— Já disse: ela quer casar pra gente continuar vivendo sob o mesmo teto.
— Ué, casa então e resolve essa parada.
— Se fosse fácil assim...
— Não encasqueta, rapaz, não é ela que está forçando a barra? Então, deixa que ela resolva tudo, você só entra com o “sim”.
— Sei não...
— Vocês já vivem como casados mesmo, não vai mudar nada.
— Ah, sei lá cara, as coisas vão tão bem assim, por que as mulheres nunca estão satisfeitas?
Marcos se diverte com o dilema do amigo, mas se esforça para dar uma solução que o tire do embaraço.
— Elas vieram pra bagunçar nossa vida, cara.
— Além do mais, como vou entrar numa coisa que eu não acredito?
— Mas você não gosta da Suzane?
— E muito...
— Então, faça por amor a ela.
— Sei lá, a gente cede um pouco e logo vem outras coisas.
— Olha só o que eu descobri: aqui, na firma, nós temos um “ledor”.
— O que é isso?
— São esses doidos que acreditam no tal “Escritor”. Vamos falar com ele.
— Mas, falar o que?
— Ué, vamos descobrir o que é isso e como a gente pode se livrar dessas baboseiras.
— Tá bom.
— Beleza, no fim do dia a gente procura o cara.
— Combinado.
Geralmente a demanda do trabalho extenua tanto que o descanso é necessário para recarregar as energias. Alguns correm direto a seus lares, outros ainda costumam viver um “happy-hour” com os colegas do trabalho para um fim de dia mais leve ao lado dos amigos sem a rigidez do ambiente formal.
Talvez fosse a necessidade de pertencer ao grupo ou simplesmente a vontade de extravasar o que comprometeria a integridade da empresa, de qualquer forma a interação social fortalece a intimidade fraterna e reúne os companheiros em torno de um objetivo: todo mundo quer ser feliz.
— Sergio, esse aqui é o Túlio.
— E aí, meu camarada, tudo bem? — Sergio estende a mão para cumprimentar o amigo apresentado.
— Tudo e você?
— Tranquilo.
— O Marcos me disse que você tá curioso a respeito do Escritor? — Túlio já se adianta.
— Pois é, cara, minha esposa, parece que se converteu a essa coisa agora e está me deixando louco.
— Hã! Eu não chamaria de “coisa”, para nós “ledores” é muito sério.
— Pô, me desculpe.
— Tudo bem!
— Túlio, fala pro Sergio aquele lance de onipresença. — Marcão chama atenção.
— O que? Tem isso também? — Sergio se surpreende.
— Ah, sim. Bom, pra começar, temos uma filosofia de que somos apenas personagens criados pela cabeça do Escritor...
— “Personagens”?
— É, é o que somos.
— Como assim?
— Bom, acreditamos que nós só existimos porque o Escritor assim o quis. Nós somos fruto de sua imaginação e, como tal, as nossas vidas são regidas pela sua vontade. Sendo assim, tudo o que fazemos e somos passa, inevitavelmente, pelas suas mãos.
— Ah, essa é boa.
— É uma questão de raciocínio lógico. Veja bem, a gente tem uma percepção limitada das coisas, até nossas lembranças podem ser uma simples implementação de uma vontade inerente a ele. De repente tudo e nada existem. Ele está em todo lugar, desde que seja a sua vontade.
— Cara isso é muita loucura! Como isso pode ser comprovado?
— Só através da Fé, sem provas materiais.
— Quer dizer então que, por exemplo, essa conversa só existe porque ele assim escreve que ela esteja acontecendo?
— Exato. Veja bem, por uma questão de raciocínio, eu não deveria existir até o momento em que ele assim decidiu que eu existiria. Mesmo que eu tenha toda uma memória de vida completa, essa vida só passa a existir depois que ele escreveu.
— Ah, para! Isso tá ficando muito complicado para mim.
— Eu sei que é. Precisa muito tempo e estudo para poder assimilar toda essa verdade.
— “Verdade”? Isso, pra mim, é loucura! Eu sou um personagem criado pela vontade de um ser, cuja existência é improvável e que criou todo o universo e molda a realidade a seu bel prazer? Então tudo que sabemos e vemos é fruto da imaginação dele e não existimos no plano real?
— Veja bem: nós existimos, aqui nesse plano, mas existem outras realidades que desconhecemos e, talvez lá, não existamos realmente.
— Mas se ele criou tudo, por que me criou sem acreditar nele próprio? Isso não faz o menor sentido.
— As razões que passam pela cabeça do Escritor só são perceptíveis a ele. Não dá pra responder a tudo.
— Ah, muito conveniente!
— Calma Sergio, ele só quer te ajudar. — Marcão apazígua.
— Mas só tá me confundindo ainda mais. — voltando para Tulio — e como os “sábios” chegaram a essa conclusão toda?
— Pelo simples fato de que nós não estamos aqui por vontade própria. Não tivemos opção de nos fazer a nós mesmos. Veja bem, estamos em uma realidade em que nós não somos essenciais para que ela exista. Se você não estivesse aqui, seria outro personagem e tudo estaria conforme está agora, basta, para isso que o Escritor escreva que é assim.
— Então não temos vontade própria?
— Definitivamente. Até mesmo a sua revolta contra a existência de um ser, que determina a sua vontade, é obra do Escritor.
— Rapaz, até eu fiquei bobo agora. — Marcão se apoia em Sergio.
— Só você Marcos? Ainda tô tentando entender essa porcaria toda!
- C O N T I N U A -