*O Padre e o Diabo

O Padre e o Diabo

Por ser um caso verdade e por eu ter ouvido diretamente da boca do próprio padre, relutei muito em escrever, especialmente levando em conta o fato do personagem central não se encontrar mais entre nós, o que poderá suscitar comentários variados. O fato não me foi contado em regime de sigilo e poderá ser do conhecimento de outras pessoas, porém não de muitas.

Padre Arnóbio Patrício de Melo ou simplesmente Padre Arnóbio, foi um sacerdote católico de origem, formação e prática salesiana. Ordenado no ano de 1957 em São Paulo tornou-se no inicio dos anos 60, padre secular na Arquidiocese de Aracaju a chamado de Dom José Vicente Távora. Ficou conhecido como o Padre da Juventude, pelo carisma de Dom Bosco, no trado com estudantes salesianos, adquirido durante os anos de diretor desses colégios. Era pernambucano de Camucim de São Félix. Homem probo, sério, intelectual, dominava línguas clássicas além do Frances, professor universitário de Português. Sacerdote cioso do seu ofício e contraditoriamente de alma anárquica no sentido figurado. Gostava de gente, varávamos noites contando loas e causos. Possuía, segundo seus pares, ideias megalomaníacas, algumas dessas extravagantes por natureza. Nascera especificamente para ser professor e sacerdote e por isso se dizia feliz e realizado.

Ajudou a fundar o MDB em Sergipe, elegendo-se vereador em Aracaju por três legislaturas, enfrentando com sabedoria a ditadura militar da época. Foi por esse tempo e por isso que acabou se envolvendo numa contenda de mal entendidos com o Arcebispo de então, Dom Luciano Cabral Duarte. Disso lhe resultou ter as Ordens Sacerdotais suspensas por tempo indeterminado. Isso nunca foi segredo para ninguém, já que fora amplamente divulgado pela imprensa.

Muitas vezes, já me peguei matutando sobre um profissional que tem sua carteira cassada, impedido injustamente de exercer seu trabalho. A esse cabem alguns recursos jurídicos, mas ao padre nada mais lhe resta a não ser a obediência. Sem paróquia, combalido, chateado, com as ideias desarrumadas, coração confrangido, certamente com uma boa dose de raiva humana e sem ter pra quem apelar, recolheu-se em sua casa, ruminado seu desgosto. Por detrás do envolvimento político-partidário que de início foi o motivo de desentendimento com o Bispo, há outro que me foi revelado pelo padre, que eu não conto pra seu ninguém e que me leva a pensar ter sido obra do inimigo de Deus.

Um fato extraordinário, que ultrapassa a imaginação dos oníricos pesadelos, aconteceu vinte e quatro horas após a assinatura do comunicado da Cúria sobre a suspensão do quadro clerical arquidiocesano. O Padre estava eu sua casa, quando o diabo entrou de porta adentro, conduzindo uma grande mala de couro sobre a cabeça. Até então, não existiam as malas com rodinhas que nos facilitam a locomoção. Deu boa tarde e assentou-se. Não era um diabo nos moldes mostrados nas figuras infantis do século XIX, com chifres, rabo de seta, pés de cabra e um tridente. Não era um diabo ensaiado pela Teologia do medo, por isso mesmo, apenas as pessoas de raciocínio aguçado poderiam concluir de quem se tratava. Muito pelo contrário, era um homem do seu tempo, bonito, alto, elegantemente trajando um terno azul-marinho impecavelmente bem cortado, gravata sóbria, com voz agradável, simpático. Sem arrodeio, já foi direto ao ponto.

- Padre Arnóbio, eu soube do que lhe aconteceu por esses dias e especialmente ontem. Vim não somente para hipotecar minha solidariedade, porque isso de nada lhe valeria. Como disse São Tiago: Se um irmão estiver faminto e outro lhe disser: Ide em paz e aquecei-vos e saciai-vos, se não lhe der ajuda de que lhe adiantará isso? O senhor foi um homem talhado para a batalha, para o enfrentamento e não irá ficar refém dessa cassação mequetrefe de Dom Luciano. Conheço o senhor de longas datas, sei da sua garra, de sua competência e não é justo enferrujar premiando a soberba desse bispo...

O diabo não é apenas inteligente, como esperto, perspicaz, finório. Quando Jesus foi tentado do deserto, esse usou passagens bíblicas e ainda O questionou: “Se és o filho de Deus...” A tática não mudou muito, só que agora ele chegou elogiando: “O senhor foi talhado para a guerra...”

Neste ponto da conversa, abriu as travas da grande mala que havia depositado sobre a mesa, abrindo-a escancaradamente. O padre me confessou nunca ter visto tanto dinheiro na vida. A mala estava abarrotada de pacotes das maiores notas da época e não sabia como ele conseguira retirar tanto dinheiro do banco. Sabia ser do banco por causa das fitas timbradas que enrolava os maços de notas. Em peso deveria atingir mais de oitenta quilos. Não saberia avaliar o montante, mas que lhe causara assombro.

- Esse dinheiro é seu por empréstimo, disse-lhe. Ponha uma igreja para o senhor pregar na Barra dos Coqueiros. Não precisa assinar documento algum, se um dia o senhor puder me pagar e quiser me pagar eu recebo, mas se não puder ou não quiser, a dívida se encerra aqui, isso sequer chega a ser um acordo de cavalheiros.

Nessa altura da narrativa eu estava gelado, ouvindo tudo sem questionamento, absorvendo cada frase, cada gesto, cada inflexão de voz.

Não me causa estranheza as investidas do inimigo, mas as suas sutilezas não serão vistas sem muito estudo. Para quem não conhece Barra dos Coqueiros, digo que é um município sergipano encravado de frente de Aracaju, apenas separado da capital pelo Rio Sergipe, numa distância reta de um quilômetro, seria um dos bairros mais próximos do centro da cidade. Por que escolher Barra dos Coqueiros para essa nova igreja? Para os bons observadores não seria difícil matar a charada. Via de regra, nas cidades que tem rios os templos católicos são de frentes para o rio, poucos casos contradizem isso. Ora colocar uma igreja na Barra de frente pra o rio, seria o mesmo que dizer porta com porta com a Catedral Metropolitana, onde o Bispo celebra. Seria um enfrentamento direto e declarado.

Quantas vezes já não me perguntei qual homem fragilizado, moralmente derrotado numa refrega, ainda enraivado e sangrando pelo calor da luta, que tendo vinte e quatro horas depois uma real possibilidade de reverter o revés, tendo por aliado o dinheiro e dinheiro é poder, ficaria impassível? Ainda mais o Padre Arnóbio, homem já com tantos familiares assassinados em Pernambuco por motivos eleitorais. Homem de índole forte e por vezes de pavio curtíssimo. A oportunidade inesperada estava ali desenhada a suas vistas era pegar ou pegar!

Depois da irrecusável oferta declarada, o padre levantou-se e respondeu de forma clara, curta, incisiva:

- Senhor, eu estou impossibilitado de celebrar, mas meu sacerdócio é indelével, nem o Papa tira-o de mim e o meu sacerdócio não está à venda. A minha encrenca com Dom Luciano um dia acabará, não sei quando, mas acabará. Sai imediatamente de minha casa com seu lixo.

O homem sem mais dizer palavras, fechou sua mala e da forma como adentrou saiu para nunca mais ser visto.

Se se pudesse abrir uma janelinha lá no céu, onde se visualizasse dois personagens da Igreja, eu gostaria de ver a alegria de Dom Bosco e João Maria Vianney. O primeiro foi o fundador da Congregação de São Francisco de Sales (salesiano), o segundo também conhecido como o Cura d’Ars é o patrono dos sacerdotes. Certamente estariam dando cambalhotas!

Esse afastamento demorou dezesseis anos, até que um belo dia, Dom Luciano Cabral Duarte, o mesmo que o afastou, solicitou a presença de Padre Arnóbio na Cúria Metropolitana de Aracaju. O padre foi. Os dois conversaram longamente, desculparam-se, perdoaram-se pelos excessos anteriores e Dom Luciano ofereceu-lhe uma paróquia nova que seria desmembrada do território da Farolândia, mais exatamente, abrangendo todo o Bairro São Conrado. Contudo o Bispo não arredou pé dos argumentos anteriores, Padre Arnóbio teria que se desvincular da vida política–partidária. O Padre prontamente aceitou e veio reiniciar a vida paroquial na Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro de 1991 até que morreu em 8 de setembro de 2005, no Hospital São Lucas, vítima de um enfarto cardíaco, isso depois de ter vencido um câncer agressivo.

Era um homem probo, político reto, professor exemplar, conferencista requintado, obsequioso e um sacerdote que sorria com o rosto todo. Como pároco nunca necessitou de um centavo da paróquia. Conheci-o de perto na convivência do Conselho Deliberativo Paroquial por ele implantado e em trabalhos pastorais outros, talvez eu fosse a pessoa mais próxima dele na Paróquia, reputo como merecedor de todos os elogios.

À frente de seu tempo venceu até o diabo.

Eu escutei, acreditei e conto.