NITROGÊNIO.

Um dia límpido de sol e sem vento, a lua num quarto crescente perfeito. A água do mar estava lisa, "passada a ferro" na gíria dos mergulhadores. Eu estava ansioso com a perspectiva de explorar aquele novo ponto de mergulho. Havia Acordado às 3:30 da manhã para revisar o material.

Minha condição física e as condições do mar eram perfeitas, um cabeço recém descoberto e pouco profundo a explorar, três parceiros experientes e de confiança, promessa de muito peixe. O mergulho prometia...

Há sempre uma tensão quando se chega ao ponto e pouco antes de cair na água, normalmente as conversas e as gozações que acontecem no trajeto, cessam completamente nesse momento. Instintivamente sabemos que a única maneira de quebrar essa tensão é caindo logo na água.

Fui o primeiro a cair na água, sem muitas expectativas, pois, na primeira imersão, o corpo ainda está se adaptando e é necessário "abrir o pulmão" como se fala, para conseguir mais tempo de fundo. O lugar era um pouco profundo demais, mas era espetacular.

Alguma coisa em nossa fisiologia faz com que, submersos, tenhamos uma noção completamente distorcida da velocidade com que pensamos. Talvez seja a pressão somada ao estado de apneia e ao excesso de CO2, mas o fato é que os pensamentos vêm como flashes e tentamos debelá-los rapidamente para manter o estado de atenção difusa necessário à caça submarina.

Enquanto retornava da primeira imersão, pensava na conversa com minha filha no dia anterior:

“Pai, lembra daquele concurso que fiz ano passado? Aquele da Marinha?” Perguntou.

“Sei, que tem ele?” Respondi já com um nó na garganta, eu sabia desde a inscrição que ela seria aprovada...

“Fui aprovada, a inspeção de saúde começa no fim do mês”

“Filha, o curso de formação é no Rio” falei tentando demonstrar calma.

“São cinco meses só, o que o Sr. Acha?”

“É né filha? Vamos ver...” Falei ganhando tempo pra digerir a ideia.

Eu sempre tive pavor de não estar perto dos meus filhos. Admito, tenho um temor irracional de que algo aconteça a eles.

O Arsenal da Marinha, local onde ela faria o curso, era meu velho conhecido. Funcionava no mesmo local do Presídio da Marinha e era onde se aquartelavam os Fuzileiros Navais e seu Comando Geral, desde 1.809. Na juventude eu frequentara ambos: os Fuzileiros e o Presídio. O Complexo todo era conhecido como Ilha das Cobras e eu não tinha a menor simpatia pelo lugar...

A ideia da minha primogênita no meio daquele oceano de egos e truculência era apavorante para mim. Ainda mais sabendo que sob aqueles gestos contidos e poucas palavras existia um temperamento muito parecido com o meu...

Me concentrando novamente no mergulho, fiz uma hiperventilação e desci tentando poupar energia e me direcionando para a borda do cabeço. O objetivo era fazer uma “espera” que é quando o mergulhador fica imóvel no fundo esperando que o peixe se aproxime e dê condições de fazer o disparo.

Olhando da borda do cabeço para o fundo escuro do oceano distingui um grande vulto: Um enorme badejo de cerca de 20 quilos nadava do fundo diretamente para mim, permaneci imóvel tentando controlar a adrenalina, coloquei o dedo suavemente no gatilho e me preparei para o tiro...

A forma como aquele peixe nadava e o seu comportamento de vir direta e decididamente em minha direção (mesmo num lugar inexplorado) eram muito estranhos. No mar, é literalmente o maior caçando o menor, e mesmo sendo um peixe enorme a experiência me dizia que badejos, quando se aproximam, o fazem muito timidamente.

Aquele peixe deveria saber que eu estava pessimamente intencionado quando alinhei o cabeçote do arbalete diretamente para sua cabeça... Foi quando aconteceu algo que talvez faça o nobre leitor descredenciar esse escriba, peço, contudo, que leiam esse relato até o final onde, talvez, a coisa toda se explique.

No momento exato do tiro, aquele badejo que nadava como que gingando, como andam os rastas do Pelourinho, falou comigo. Isso mesmo, o peixe falou...

“Nêgo, segura aí esse dedo que eu quero trocar uma ideia com você...” Ele não movia a boca, era uma espécie de telepatia.

Eu já havia visto muita coisa estranha no mar, mas aquilo era demais. Tencionei novamente apertar o gatilho, mas o bicho, como que interceptando meu pensamento, falou novamente:

“Espera rapaz, é sobre seus filhos!”

“Que porra é essa?!?” pensei relaxando o indicador.

“Você superprotege aqueles jovens, meu velho”

“Que é que você sabe sobre filhos? Você é um peixe, caralho...” respondi um pouco envergonhado de mim mesmo pelo absurdo da situação...

“Esse seu apego é na verdade um ato egoísta, o que você busca é o bem estar que eles te proporcionam, você deve desapegar-se um pouco”

Eu não ia ficar discutindo com um badejo, a situação era ridícula demais pro meu senso lógico. Coloquei novamente o dedo na guarda e pressionei para acionar o gatilho. Em vez do coice e do barulho característico da seta saindo pelo cabeçote ouvi novamente a voz do peixe:

“Está vendo? Está tão preocupado em sua filha ir para o Rio de Janeiro que esqueceu a trava de segurança acionada.”

Era verdade, eu jamais cometera esse erro básico em todos esses anos de caça submarina, a trava de segurança impede o acionamento do gatilho e serve para prevenir disparos involuntários.

“Que porra é que você quer!?” falei irritado.

“Você esquece o quanto amadureceu nos Fuzileiros? homem, pense numa planta. Se você a protege demais do sol ela definha, se põe muita água ela pode até morrer, seus caules só enrijecem sob a ação do vento.”

“Eles não são alfaces. São meus filhos, cacete!”

“Esse seu egoísmo só te trará sofrimento, não os ajuda e você só será feliz se desapegar-se.”

“Não estou no mundo pra ser feliz, não sou a Xuxa, quero orientar e ajudar meus filhos.” Falei pensando em soltar a trava de segurança.

“Os filhos devem ser criados pro mundo”

“Eles são crianças, vão fazer merda...”

“Eles só deixarão se ser crianças quando você parar de tratá-los como tal...”

“Vai se fuder!”

Aquele foi um "vá se fuder" puramente retórico... O peixe tinha razão.

Numa epifania, percebi que o que eu tinha de mais valioso não me pertencia, o badejo ficou me olhando a uma perfeita distância e num ângulo perfeito para o tiro... eu ainda tinha 30 segundos de apneia. Mas eu não caçaria mais...

As minhas flores, só cresceriam fortes se eu parasse de regá-las tanto, de tentar impedir a ação do vento e do sol...Eu não caçaria mais.

A água estava tão translúcida que eu via o sol brilhando nitidamente na superfície. "Tão distante..." Procurei o badejo e não o vi mais. Sentia uma leve e gostosa letargia, estava bem. Sem forças nem vontade de voltar...

"Voltar pra quê? Recebi lições de um badejo..." Pensei.

"Pratique o desapego", houvera dito, o badejo filho da puta...

“Voltar pra quê? Se aqui no fundo eu posso voar?”

Não sentia a pressão nos ouvidos, a urina involuntária, o excesso de CO2 não queimava meus pulmões, estava calmo e confortável. "voltar pra quê?"...

Fui tomado por um sono reconfortante, estava a 20m de profundidade. "O útero de Iemanjá, um fim apropriado"... Parei de olhar o fundo e, olhando o sol tépido na superfície, adormeci. Eu tinha consciência do que estava acontecendo, mas estava sereno e confortável. “ ‘O útero de Iemanjá’ daria um belo poema...” foi meu último pensamento antes do sol lentamente se apagar da minha retina...

************************************************************

Acordei num quarto de hospital sem nenhuma noção de espaço e tempo . Distingui o rosto severo de Nairinha me olhando preocupada.

"Filha?"

"O médico falou que o Sr. teve uma narcose por nitrogênio e um barotrauma, quase morre, meu tio te tirou do fundo do mar, já tá há uma semana aqui pai..." Falou com seu jeito objetivo, entre feliz e irritada.

"Filha, conversei com um badejo..."

"Nem me fale de peixe! Nunca mais nada de mergulho!" Falou com a inflexão e o timbre incrivelmente parecidos com o da avó que ela não chegou a conhecer...

"Ele disse que eu sou superprotetor. Eu sou superprotetor minha filha?..."

"O badejo disse foi? Oh meu Deus!..." falou maneando a cabeça e olhou para Tavinho que estava fora do meu campo visual do outro lado da cama...

Ele se aproximou com seu peculiar sorriso irônico, ficou ao lado da irmã, me beijou e colocou a mão em minha testa:

"Vai dormir pai..."

Fui fechando os olhos feliz. Observando seus rostos harmoniosos.

Antes de adormecer, passando por aquela zona entre a realidade e os sonhos, entre a vigília e o sono profundo, percebi que não existe excesso de amor, que no amor não cabe posse e que tudo na vida é troca.

Percebi que, no ciclo da vida, talvez houvesse chegado minha hora de ser ajudado e orientado pela vida afora...

Dormi o sono mais feliz e tranquilo que um homem já dormiu sobre a terra...

Nairson Luiz Santos
Enviado por Nairson Luiz Santos em 13/04/2015
Reeditado em 14/04/2015
Código do texto: T5205754
Classificação de conteúdo: seguro