Da tinta ao gigante de pedregulho

O tempo estava azul, amarelo e verde. Diante da janela eu olhava para fora, assistindo os cães a brincarem no quintal, mordendo-se, fugindo, latindo uns para os outros.

Quando voltei-me para dentro, não encontrei ninguém - a casa estava vazia. Só havia o velho piso branco e a sala parecia estar o triplo do tamanho normal. Caminhei para chegar no corredor, parei antes da passagem para ele; meus pés pareciam ecoar nos passos.

Sem móvel algum, observei a parede e, de modo intuitivo, coloquei a mão sobre ela. Estava absurdamente fria, mas em segundos ficou quente. Ferveu em minhas mãos. Assustada, afastei-me alguns passos para trás e olhando para os meus dedos notei que estavam impregnados com tinta da mesma cor da parede. Ouvindo um som similar ao de um riacho correndo, olhei desta vez para o chão e do corredor avistei um fio de tinta verde a escorrer até mim.

"É só um fio" - eu pensei, até notar que o som aumentava, transformando-se no de uma cascata. Em questão de segundos - mais uma vez míseros - me vi em fuga de uma cachoeira de tinta verde. Corria até a porta, mas não chegava. Só via um feixe de luz dourada a entrar pela fechadura - notei que a porta também não era a mesma; a fechadura era maior e mais antiga.

Tentando ainda correr para longe, senti o meu corpo dominado pela tinta. Minhas roupas já pesavam mais, minhas pernas estavam cansadas. Pouco a pouco fui rendendo a minha respiração ao sufoco. Afundei.

Fiquei no fundo sem abrir os olhos, sentindo o meu coração disparar com dor, apenas mentalmente a desejar a morte para me livrar daquela sensação horrenda de não respirar. Eu comandei o meu corpo na proporção que pude, mas ele gritou e não pude mais. Respirei ali mesmo e a dor foi pior, colossal.

De tão gigantesca a dor, enlouqueci em instantes. O cheiro de tinta agora parecia cheiro de grama e terra molhada. Abri os olhos e para a minha indagação, continuava submersa, mas limpa, transparente. Submersa por água cristalina.

Olhei para a superfície ali mesmo, do fundo, a soltar bolhas. Havia uma camada incrivelmente azul-clara. Nadei até ela, arranjando forças do cansaço de morrer aos poucos.

Respirei - que grande alívio! Respirei o ar puro daquele mundo que já não tinha um único resquício do meu. Mas distante, conseguia ouvir os latidos dos cães ainda brincando uns com os outros.

Era um lugar incrivelmente carregado de maravilhas. As águas as quais saí eram raras num mundo tão poluído como o que deixei, mas reais. Reais como a natureza.

Olhei em volta sentindo o meu peito levitar na pureza do ar e me vi diante de uma lindíssima campina verde, com plantas de vários tons de verde. Uma aquarela esverdeada.

Caminhei e o meu corpo já havia secado. Parei a alguns metros de uma árvore que lembrava a ficus que plantamos em casa. Era uma ficus, mas parecia dançar suas folhas. A brisa batia mais forte no topo e volta e meia eu piscava a assistindo girar, num movimento curioso - o de rotação. O restante que se prosseguia, parecia mudar lentamente de lugar.

No horizonte a campina aumentava, subia, tinha mais vegetação. Pensei em procurar uma casa, mas o encanto não me permitia a vontade sincera de deparar com nada humano.

_ Engraçado. Geralmente você não vê porque perde si mesma nos pensamentos... E aqui?

_ Aqui? Eu penso, mas vejo muito mais e eu...

Parei com o diálogo ao perceber que realmente tinha ouvido uma voz interrogando-me. Olhei para a ficus e encostada em seu tronco encontrei uma menina, uma menina que eu bem conhecia. Era uma amiga de escola, com a qual convivi durante três anos. Ela parecia diferente. As feições pareciam mais saudáveis, os olhos menos manchados do cansaço urbano.

O céu era aquela camada azul-clara e de longe eu via o sol com aquela luz branca - que aos olhos do homem é dourada. E mais uma vez achei-me a prestar atenção no ambiente. Não deveria estar entretida naquela amiga? Não sei, mas não estava. Olhei para o céu tantas e tantas vezes!

Era riu-se e, abrindo a mão direita, libertou uma borboleta minúscula e esverdeada. Depois, em um sobressalto de criança, pegou mais uma folha que flutuava pela brisa e prendeu na mesma mão. Fez um gesto infantil e animado, pedindo a minha mão emprestada.

Cedi a mão, claro; e ela, em outro riso singelo colocou algo em minha palma, fechando com os meus dedos. Senti cócegas e ao abrir a mão, deparei-me com outra borboleta esverdeada.

_ Veja como ela voa! - Disse eu, abismada.

_ Não voa, a brisa leva! É só uma folha distinta, que chamam de borboleta!

A resposta de minha amiga deixou-me ainda mais pensante, mas ali ser pensante era ser muito observador - como se a mente estivesse fora e nem tanto por dentro. Tudo eu observava, até a nuvem que não aparecia.

E de repente, entretida eu não pude notar direito, mas ela fez um gesto alarmante. A noite estava caindo como um copo vazio sendo preenchido.

_ Ele te levará! - Disse-me ela, num entusiasmo maior que a dúvida.

_ Ele? Quem? - Senti um pouco de receio, dado que recém tinha me deparado com aquela extrema natureza espiritual.

_ O gigante! - Ela só acenou.

Antes que eu pudesse pedir maiores detalhes, senti uma mão imensa envolvendo-me e puxando o meu corpo frágil para cima. O medo eu não sabia se deveria sentir e por isso, por mais estranho que pareça de fora, eu só admirei a sensação de levitar como o ar fez com meu peito e passei deslumbrada com as estrelas - tão cheias de luminosidade em um céu de negrume. Bela, bela escuridão!

Não consigo lembrar-me tão bem de como fui parar no cenário que se seguiu. Mas fui. Fui sentindo-me incógnita - gostar ou não da sensação natural à Natureza e incomum às pessoas. O que nós somos? Crianças que esperam a oportunidade de saltar na sua cama elástica, Natureza?

Enfim lá estava eu, frente a frente com um gigante de pedregulho. Não ciente do motivo, fiquei em meu canto aturdida. Tantas pedras no mundo! Por que não encantar-se com elas? Era o que eu refletia naquela sala de tons noturnos.

O gigante nada disse no início e ficou a olhar algo pela janela escancarada. Eu tentei espiar mas só vi formas estranhas lá fora - rabiscos de vaga-lume. Não entendi o sentido, era um tanto abstrato. Mas verdade... Qual o sentido do rabisco de um vaga-lume?

As dúvidas naquele momento vinham e sendo franca, nunca mais consegui repensá-las da mesma forma. O gigante, movendo-se lentamente como um bailarino, fez-me ouvir as primeiras notas de Nocturne e disse tudo o que jamais eu lembraria.

Lembro apenas de ouvir o "Ritmo das pedras" e de vê-lo beber um pouco de lava pura, enquanto contava pedrinhas de algum leito de rio.

Ele era a majestade daquele mundo? Com tantas coisas belas ali, um pedregulho?

Depois, ele apresentou-me a janela, mudo. Não espiei mais os vaga-lumes. Desci por ela e caí em um túnel - no início dele consegui ver orquídeas, depois relvas. E no fim vi a humanidade em sua podridão, com raros vasos verdes e muitos baldes de tinta.

O gigante acenava de cima, tão calmo e tão estável. Tinha um coração de pedra, decerto. Pedra que sentia! Provavelmente merecia o cargo de guia.

Senti que a queda chegaria logo ao fim, mas confesso que não queria. Subir e cair no mesmo dia é voar! E sempre amei voar em voos.

Despertei na minha cama de sempre, após sentir o chão possuindo o conteúdo de tudo o que grudava nele, tudo o que dependia dele para ficar de pé. A Física é fascinante! O chão é só um de seus componentes e ela assemelha-se! É apenas uma em meio a tantos degraus da Natureza.

Antes de tudo, o homem tenta manipular todo este mundo, sem pensar que é só a tinta verde - sintética, de pigmento imitador do natural e belo. Mas em um mundo como o do meu sonho, o surrealismo acaba-se no princípio mais humano que científico. Sim, o ser humano é parteiro da Ciência!

O paraíso pode estar numa flor, numa árvore, num cão e numa pedra - basta pensá-lo. Até as pedras são componentes belíssimos. O gigante sente e sempre sentirá, mesmo tomando lava!

Talvez um dia o homem seja de pedra, também.

Tai Sant Ollem
Enviado por Tai Sant Ollem em 09/08/2014
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