A PRÓXIMA ESTÓRIA
Vechia entrou no quarto bem devagarinho. Esgotado se deitou ao lado da mulher e companheira de tantos carnavais. Os anos se foram e quase nada mudou: ele sempre entrava como se pisasse em ovos... Incomodá-la jamais. Dormiu enroscado na amada. Não lembro bem a que horas. Mas, era madrugada. Não demorou muito e o homem pulou da cama como se despertasse dum pesadelo. Ouvira um grito pedindo socorro. Esfregou os olhos. Sentou-se e de pronto ouviu a reclamação de sua amada mulher.
- Vechia volte pra cama! Todos os dias agora é isso... Não consegue se aquietar! Venha... Venha logo se deitar meu amor!
O homem ainda tentou argumentar sobre aquela voz lhe pedindo socorro.
- Querida voce não ouviu? É uma voz... Escuta. Está pedindo novamente... Você não ouve?
- Não homem-de-Deus! – E a mulher se virou pro outro canto da cama e tentou dormir.
Vechia se levantou e foi atrás daquele intermitente pedido: andou até a cozinha. Abriu a geladeira. Tomou um gole d’água. Acendeu um cigarro... Nada por ali. Entrou na sala e acendeu a luz e tirou o “Cem Anos de Solidão” do sofá e o colocou na estante e rodopiou em 360 graus o corpo e nada! Apressado visitou os outros quatro quartos. Mas, a voz não vinha de nenhum deles. Ainda sonolento, retornou ao próprio quarto onde sua mulher dormia. Ficou ali parado contemplando a companheira, pensando como, ainda, se amavam e eram tão felizes. Sem controle o seu pensamento lhe veio à boca:
- Eu te amo! Não viveria sem voce!
- Del Vechia! Del Vechia! Volte já pra cama. - Quando ficava zangada ela o chamava pelo nome e sobrenome - Del Vechia o que você ta fazendo parado aí na porta?
Ele foi à cabeceira da cama e deu-lhe um beijo. Pensou em perguntá-la algo. Mas, desistiu. Retornou à sala a procura de onde vinha a voz. E novamente a ouviu.. Agora, o som estava menos intenso. Mas, lhe parecia familiar:
- Socorro! Socorro! Socorro! Me tire daqui. Não quero...
Vechia visitara todos os cômodos e lhe restara somente o seu bureau. Alargou os passos e quanto mais se aproximava do escritório a voz se tornava mais pessoal. Então, ouviu:
- Del Vechia... Del Vechia! Pare com essa correria e venha logo pra cama! Esqueceu que amanhã cedinho vamos ao Galeão. Temos que buscar o nosso Simon. Voce esqueceu?
Aquela união já durava 30 anos. Se conheceram no carnaval de 68. Ele era de Buenos Aires e ela – Doralice - era carioca da Urca. O pai era militar e nunca sorriu pra aquele namoro. O capitão do exército desconfiava que o futuro genro tivesse ligações com o Partidão. Mas, tal insatisfação não foi empecilho pro namoro e pro casamento cinco anos depois. Dessa união nasceram Simon, Stella, Torquato e Castro. Vechia veio pro Rio de Janeiro e conheceu Doralice em 1970 e na companhia da amada e pela TV viu o Brasil ser tricampeão. A seguir concluiu sua tese de mestrado, na PUC: “Autoridade e Autoritarismo: Desafios e Perspectivas na Assunção do Poder”. E é claro virou mais brasileiro que argentino.
Aquele bureau era o santuário de Vechia! Lugar onde passava quase todo o tempo. Só saindo para atender aos pedidos de Dorinha – gostava de chamá-la carinhosamente assim. Sentado a escrivaninha Vechia fazia quase tudo: escrevia textos pra um periódico argentino, fazia artigos sobre conjuntura nacional e internacional e ainda reunia tempo para criar e expurgar “santos e demônios” de a sua imaginação.
Abriu lentamente a porta. Ainda, pisando em ovos entrou para ouvir o pedido que vinha do fundo do escritório. Caminhou em direção a voz - como quem já soubesse de quem era a insistente... Parou em frente à escrivaninha. Sentou-se. Pegou o seu último romance. O folheou. Parou na penúltima página...
Em verdade, Vechia ficara toda a noite anterior e boa parte da madrugada enfurnado naquele escritório, decidindo como acabaria com a vida de Teodora. Uma mulher extremamente perversa. Temida por todos pelo seu requinte de crueldade. A megera não admitia questionamentos. A sua palavra era a verdade e quem tentasse enfrenta-la era exterminada sem dó e sem piedade. Certa vez, uma vizinha discordou dela: Teodora primeiro envenenou o cachorro e depois matou toda a família desafeta e jogou no fundo de um poço... Ninguém sabia a sua identidade e tampouco como chegara naquela comunidade. Não tinha sequer um ente querido.
Paralisado diante da penúltima página, incrédulo olhava para Teodora, espantado e sem compreender o que estava vendo... Então, ouviu a mulher lhe suplicar socorro. Vechia socou a própria cabeça pensando em acordar daquele terrível pesadelo. Mas, nada! Teodora com a metade do corpo pra fora da página questionava a possibilidade de seu fim trágico.
- Porque deseja a minha morte? Aliás, voce não quer somente a minha morte. Voce quer me trucidar. Pra que pague as maldades que voce criou pra mim. Não aceito! Não concordo! Me dê pelo menos uma chance?
Ali, empacado Vechia não cria no que estava a sua frente. Coçou os olhos. Tentou gritar por Dorinha. Mas, foi novamente indagado:
- Eu não sou culpada das atrocidades que praticava. Às vezes, eu até discordava das minhas atitudes. Mas, os meus desejos nunca foram levados em conta. Lembra-se daquela vez que eu fiquei embriagada e atropelei e matei três pessoas na calçada? Eu desejei parar no terceiro copo. Mas, não! Fui obrigada a beber até ficar com as pernas bambas e aí deu no que deu... Eu quis socorrer as vítimas. Mas, voce me forçou a fugir... Eu não quero morrer e nem vou deixar que você Del Vechia me mate!
Passado o susto inicial, mas ainda atônito e tropeçando nas palavras Vechia respondeu autoritariamente que Teodora não tinha nenhum direito de questioná-lo e que faria com ela o que ele bem quisesse:
- Voce é apenas mais uma... Você não existe! Você é pura ficção!
E Vechia agora - irritado pelo questionamento - arquitetava uma morte lenta e trágica. O raciocínio do escritor era que somente assim todo o mal seria reparado. O homem buscava a lei de Talião como medida compensatória. Vechia estava convicto que as maldades de Teodora não poderiam ficar impunes e que o cárcere seria pouco diante de todas as perversidades praticadas por ela.
- Quem arquitetou essas perversidades? Quem criou a Teodora? Voce até pensou em me apelidar Téo, para me dar um perfil dúbio... Lembra? Quem pôs sangue em minhas mãos? Eu tive alguma chance de dizer não? Desde o início eu não concordava com as minhas manias... Ou melhor, suas manias, né? Mas, você estava determinado em me tornar uma mulher mal-amada, impiedosa e sem nenhum afeto! Nem mesmo família você me deu? Tantas vezes chorei e você só virava a página!
- Eu te criei e tenho o direito de fazer o que bem desejar... Durante toda a trama você se comportou e buscou que o seu fim fosse triste e doloroso. O seu fim deveria ter sido quando voce impiedosamente decapitou o seu amante. Aliás, eu deveria ter feito isso antes de ir pra cama. Assim não estaria agora debatendo com você... Peraí, quem é você?
Teodora, agora, pos quase todo o corpo pra fora da página. Mas, foi empurrada por Vechia pra dentro do livro. Mas, de lá lhe berrou:
- Eu sou o que voce pensou, Del Vechia! Eu sou a sua imaginação. Sua criação. A protagonista... Sou de todas a que mais te perturbou. Que tirou o teu sono... Sou aquela que não te dar paz e que mais te incomoda. A prova cabal é que você não consegue me eliminar como fez com tantas outras. E sabe o porquê? Eu sou a mais desejada e querida que você produziu. Sou a sua última filha e por isso não pode desfazer de mim tão fácil...
- Del Vechia! Del Vechia! Onde voce está. Já amanheceu e nós temos que buscar o nosso filho no aeroporto.
Durante o trajeto pro Galeão – ainda dentro do automóvel - Vechia decidiu que não mataria Teodora. Depois, no bureau Incinerou todo o livro e prometeu a Teodora uma nova estória... E Vechia, então, recostou-se no colo de sua amada Dorinha.
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