Sem Idade

Hoje, acordei sem idade. Nesse disparate que dispara o coração logo ao amanhecer, tento me fazer esfinge e vislumbrar essa interrogação que me engole. Maldita serpente, completando seu ciclo nefasto, engolindo a própria cauda junto comigo. Contemplo esse abismo de olhar que se sustenta na fragilidade do espelho, que se espatifa em meu peito e penetra o coração com fagulhas de vidro que me fazem por dentro sangrar. Tento colocar a ponta dos dedos para arrancar as pequenas e cintilantes agulhas, mas só faço espetar e mais aprofundar as feridas. No desespero eu ignoro o fato e sigo de pés descalços, não me preocupando com as depressões do terreno. Já estou depressivo demais para me importar com algo além do eu. Beijo essa própria boca de vidro e provo o gosto desse fato.

O toque de recolher os fragmentos começa a despertar alguns outros sentidos. Os sentimentos vivos são como pequenos fogos que explodem, oprimindo o céu da mente que se escurece em um fechar de olhos. O universo talvez seja uma temporária cegueira de algo. Os lampejos estelares não me deixam respirar, já que movimentam os cacos em direção aos pulmões, que agem com fortes sucções. Uma gota de suor se insinua e escorre, negando aquele corpo aquoso que a deseja. Os pés são molas enferrujadas. Com tendões já enroscados de forma fóssil, feito um tronco de sequóia que acredita poder chegar aos céus. Mas a queda é grave para quem acredita nesse disparate. Que se abra um hiato com o impacto, que faça varar o planeta, caindo na negritude desse espaço ainda tão desconhecido. Virar uma estrela sem brilho que nasceu com o fim de arrefecer. As plantas dos pés são carnívoras e devoram da raiz até o ápice.

O menor se enforca com a própria sombra, no instante em que o maior contempla sua forca, gigantesca e rota. Um suspiro e piramos no susto infinito. Sussurro dos que urram na agonia de uma dor vivida, que faz a vida ter uma tese. Eis o grande teste destes animais cerebrais, com pelos de menos e prepotências demais, já que o cérebro insiste em Descartes e não tem jeito. Navegamos pelas ondas do mar, que nos arrebentam contra as paredes radiofônicas e faz com que o Leviatã cibernético balance seu corpo enorme, fazendo com que não enxerguemos um começo e um fim, é deus virtual, servido em nossas cyber mesas. A cintura é fina e baila com a dança de um ventre de serpente, reproduzindo um espetáculo deprimente. Os ausentes, presentes nas mentes de quem pra si mente.

As idades continuam a desistir de existir. Não tenho idade, apenas a realidade que ignora quando vim ou para onde irei, importando-se com carpe diem. Não me vejo como um número a ser decifrado. As cifras são lançadas. Todos os dias. A responsabilidade é de quem vive nesse mundo capital. Ontem tive vinte anos e o que isso importa agora? Nesse instante não me recordo. Consigo lembrar os números dos cartões de crédito, dos telefones, das senhas da internet, dos documentos que utilizo como cidadão registrado. Mas a porra da idade não vem á mente. Deu um branco. Talvez um preto. Um blackout de uma mente sobrecarregada com a energia diária. Vamos sendo preenchidos por toda essa merda e entornamos, como o esgoto que vaza e logo fechamos para não mais olhar. Por mais que o cheiro contamine as narinas, nauseando o corpo inteiro. O segredo dos finórios é esse, suportar o próprio podre aroma. A crueldade que arromba vidas e que a sociedade sustenta a partir daquilo que desmorona.

Ainda não sei sobre idades, cidades, novidades. Creio. E isso é o primeiro passo para o mergulho no absurdo, que se faz de surdo e mudo para ganhar triunfo. Meu nome não fui eu quem escolheu. Os números me foram dados. Sou um dado. Lançado nos tabuleiros mercadológicos, onde a sorte é privilégio dos donos desses cassinos. Mordem a jugular de nós, simples mortais, com seus caninos de vampiros usurários. E pelas ruas eu encontro os usuários, cada vez mais dependentes, esmolando para outras gentes, inteligente, indigente, insurgente. Sem idade eu não sou nada e a minha força está nessa negação. A idade é hoje e o resto é um se fosse que a História irá contar da forma que a alguns poucos interessar. Eis o que há. Ah, adoro o ar, porque ele invade convidado e ainda dissemos que chegou sem autorização. Sem ele, como respirar? No máximo piramos e com ira batemos palmas para comemorar mais um ano. Não. A idade de novo, não.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 03/12/2013
Código do texto: T4597572
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