Rio Morto
Na estrada, o carro segue a linha reta da faixa amarela que corta o asfalto. A família se concentra e contenta em apreciar as formas que são deixadas para trás. O veículo para, todos descem, não existe meio de prosseguir o trajeto. A tempestade que cessara, deixara a enxurrada. Uma desviada de olhar, ao percorrerem um curto trajeto a pé. Perdido, sem conseguir retomar o contato com os familiares, segue adiante, na busca de um ponto qualquer de encontro. A água avermelhada, lamacenta, corre furiosa. Outras pessoas são encontradas pelos caminhos, como retirantes, se esgueirando por atalhos do meio da vegetação rasteira e do solo encharcado e pedregoso. Uma conversa ou outra, com o assunto repetido, a água que os cercara. Crianças, parecendo adultos, procurando se virar em meio ao caos.
A vista alcança a rodovia novamente. Chega-se até um posto de gasolina, mas um rio violento passa adiante, impedindo atravessar. Um momento de espera, a água em certo trecho se acalma. Os pés vão tateando aqueles pontos do solo que são visíveis e firmes. Vem a lembrança de outro dia, quando encontrara um grupo de amigos. Deitadas sobre a grama, observando o céu azul. As nuvens se formaram rapidamente, mas esperaram as águas. Em pouco tempo, tudo estava tomado. Foram caminhando até onde podiam. Detendo-se diante de um volume de águas que surgia cobrindo avenidas, com os jovens se aventurando pelas beiradas, na busca daquela aventura. Agora, só desejava rever os familiares, perdidos. Mais um atalho pelas margens, outras famílias. Um bairro de periferia, casas simplórias, que por sorte não foram afetadas, já que seriam facilmente levadas. As pessoas se unem em meio à desgraça coletiva, por compartilharem da dor.
Abro os olhos, diante do amigo, que expõe sua força estupenda. Diz que é possível fazer-me o que vira no filme. Digo que não desejo ser aleijado por nenhum projeto de Bane. Ainda assim, insiste. Sem que me dê conta, agarra-me, forçando seus ossos contra minhas costas, causando forte dor em minha coluna. Sinto a fisgada, comprimindo as articulações. A dor chega rapidamente ao cérebro, mal é possível raciocinar. Talvez tenha me seduzido pelo falso bem estar de outrora. O pai adentra o quintal, interrompendo a cena, com as dúvidas a respeito das impressões que teriam sido geradas. Toda a vida é um pesadelo. Fazendo com que observe o corpo flácido diante do espelho, segurando alguma lata de cerveja, que será esvaziada de forma deprimente. A pele transpira, deixando as tatuagens em alto relevo, expondo aquele imagem da tinta que preenche uma porção do corpo.
As portas escancaradas do armário, revelam uma cor ou outra, destoando do comum trevoso. Os quadrinhos tendem a se avolumar, espalhando-se pela parede, feito uma epidemia de pequenos rostos mortos, que formam uma pequena correnteza, que invade os olhos de quem se depara com eles. Do outro lado, três figuras, com destaque diferenciado, sendo acompanhados pelo majestoso espelho, que só reflete aquilo que vejo. Creio que consiga captar além do que eu imagino, mas não creio que os outros objetos, passivos, consigam se dar conta do horror disso, como eu constantemente faço. Aqueles olhos vazios que me fitam, fazendo com que eu pareça ainda mais morto, ocupando esse espaço que não é nada. A alma é essa luz que tende em certo momento a apagar, feito lâmpada queimada, com um último clarão, ou nem isso. O ar gela o ambiente, fazendo com que minha garganta sufoque com a secura. Por isso, bebo mais água, escarrando porções de mim na privada. Algumas vezes, com um matiz de sangue. Eis a vida. Simples, nojenta, dolorida, podre. A morte é uma reciclagem.