Sem Você
Acordo um dia, olhando diante do espelho. O susto de não existir. Onde está você, esse eu que pressupunha ser? Nada de imagem, o reflexo foge feito uma não-sombra de vampiro. O vidro nada expõe, como se não existisse nada a ser revelado, apenas a superfície que tem um brilho opaco. Já tive mãos, agora apenas gestos furtivos que se esvaem no espaço aberto. Faço uma mímica patética com falta de público, o único expectador inexiste, deixando todo o espetáculo em suspenso. Ainda que soque as paredes, elas continuam a ignorar minha força, devolvendo a pancada que só dói em mim. Da boca saem xingamentos que ecoam até sumir na sonoridade que se perde. Não posso falar comigo, já que inexisto. Falo por falar. Um louco tagarela que conta para as paredes sobre sua aflição, tentando penetrar algum fresta na alvenaria. Apesar da forma quadrada, pareço circular, voltando ao ponto de origem, dando voltas e voltas, como se fosse um único movimento.
Olho embaixo da cama, como se tivesse me perdido ao acaso. Nunca deixei pistas, daí a dificuldade de qualquer encontro com esse ser fugidio. Começo a questionar se um dia de fato existiu, já que me abstraio por completo. Na escrita, como se psicografasse memórias, nada obtenho de sensato, fazendo caminhos que a gramática impõe. Os caminhos descritos não são meus. Ler é ainda percorrer a escrita, quando escrevo ainda busco algo no espaço entre cada ponto que irei gravar. O cérebro, quando durmo, finge me ignorar, dando impressão de que vive solto, fugindo por delírios oníricos, até que eu padeça dessa idealização. Antes eu deveria ter algum animal para acariciar, quem sabe alguém que se importasse. Nesse instante, apenas toco minha própria pele, me fazendo um de fora que tateia. Ler “A Metamorfose” de Kafka não me ajuda, já que não sou nem bicho, nem lixo. Não sou nada.
Quão dolorido é deixar de ser. Jamais me informaram a respeito disso, já que recebo tantas informações sobre o que fazer, mas o não fazer é angustiante. Estou em um labirinto fantástico, chego a gritar dentro de mim. Agora entendo porque o coração acelera dessa forma, quase saindo do peito, estourando minha caixa torácica e caindo em cima dos pés. Se fosse apenas falta de memória, seria um novo eu a cada momento. É bem pior do que isso. Sei que fui algo, mas não consigo enxergar. Cego sem óculos, que percebe ao longe um vulto. Nenhum Platão me guia para fora dessa caverna, o que me faz chorar, deixando gotejar a gruta que abre a boca me engole, fazendo-se abismo que me puxa feito precipício. A possibilidade de doença existe, mas onde encontro a cura? Chego a escutar alguma coisa, me dando conta em seguida que são meus passos caminhando em círculo. Fecho os olhos para não mais enxergar, mas ainda assim vejo e isso me aflige a ponto de espremer a cabeça com as mãos.
O papel é meu rascunho, enquanto sigo sendo folha apagada. Os borrões persistem. Consigo me virar ao avesso, a aparência é desagradável, enxergando os órgãos em funcionamento, com o espetáculo de músculos, sangue, veias, em cores vivas que não seguem nenhuma refinada estética. Nenhuma das células me dá qualquer indício, já que o avesso é o mesmo desdobrado. Volto ao estado anterior, segurando um copo de bebida, que engulo em um só gole. A cabeça fica tonta, o que me faz escorar o crânio no travesseiro, após jogar o corpo sobre o colchão mole que me absorve inteiro. No teto busco o último incentivo para uma possibilidade de mim, mas apenas fito uma outra parede, pálida e dura. Desisto de você que abandona a mim, juntos matamos o eu, que nunca existiu, mas que um dia cismamos em criar.