A Tela
Eis-me aqui!!
Diante da escrivaninha, que sustenta a tela que me engole antes que eu engula ela. Devoradora negra que irrompe as estranhas daquele objetando ver, mas que é objetivado em uma relação entre coisas, não em si, mas ali, aqui, talvez dali. Caminhando sem pernas por campos cinzas, chamuscados de primas opacos, em um arco-íris reduzido, recompondo-se em vigas que cortam, atravessam suas entranhas pulsantes. Pulso aberto que faz escorrer o sangue negro dessa morte em vida, que desce feito rio que nasce em poço morrente. Abro estes espectros orbitais e contemplo um Hades magnífico, enfeitiçando com seu manto enegrecido, que se estende pelo solo infértil, semeando a improdutividade de um terreno estagnado.
Ouço o voo das espécies noturnas de rapina, que rodopiam em volta desses tímpanos alertas. Quase é possível sentir a penugem espessa que avoluma estes visitantes indesejados, sendo que as penas que despencam, caem longe, feito uma sombra apenas cogitada em um lampejo insano. Asas que não me fazem voar, apenas afundam ainda mais essas patas de bode expiatório, na terra que me engole, mais do que me sustenta. Uma areia movediça que devora aos poucos, com náuseas que a fazem regurgitar-me constantemente, o que prolonga o processo de gula telúrica. Se ainda me fossem dadas estas asas como sandálias, me fazia de Hermes e tentaria uma fuga, apesar de sentir que a viscosidade lodosa tornaria a locomoção impossível. Porque não bicam, já que demonstram certa agressividade, ou mesmo rasgam a frágil película com suas garras?
A saliva escorre para dentro da garganta, causando alívio sufocante. Um refrigerante degustar mucoso que umedece secando as vias aéreas. Nada de ferruginoso nesse sabor, apenas o efeito de aerossol inalado. A tela engolida de forma gaseificada, que preenche o corpo passivo, fazendo-o interagir, feito um fantoche movido a ar. Na tentativa de expulsar o intruso, consegue no máximo expelir pequenas lufadas de gás carbônico. Fossas abertas a cada ato respiratório, compondo arquipélagos de gotículas salivares, onde o mar é o infinito espaço lacunar que preenche os campos que separam e unem as ilhas-gotas. Talvez a composição seja de lágrimas pequeninas, em um pranto que só o mais sensível consegue captar, por habitar as entranhas, formando uma composição estranha. É a prisão de portas escancaradas, onde o encarcerado possui a disciplina de manter-se dentro do regime.
Um passo em falso. Um breve soslaio. Mas a atenção que a tela exige, ou antes exijo eu, a partir de um posicionamento que me faz encarar. Saltando sem sair do lugar. Com os abutres a espreitar, ansiosos por um corpo putrefato em que possam se banquetear. Só que se iludem em sua cegueira glutona, pois sou preenchido de um nada, que nem mesmo os ossos terão como alívio para roer, pois não existe nem mesmo cálcio, no máximo um calço flutuante que me serve mais de percalço. São os vermes-hiatos que me devoram, de dentro pra fora, já que determinei um obstáculo e tracei limites, pois a batalha não concebe tréguas, apenas manifesta um desejo de pontuar, para termos um território em que se possa digladiar. Meus vermes são os germes que motivam esta existência.
Lendo o espelho daquilo que consigo refletir a partir de outros reflexos. Um convite a assumir a covardia de Perseu, não podendo tornar-se rocha, pelo receio de fitar os sedutores olhos, adornados com cachos serpenteantes, da magnífica Medusa. É uma reflexão mais fixa do que se fazer mineral, já que o inorgânico dissolve sem esse receio, que o continuísmo da imagem tenta conservar em perspectivas cegas. Usemos a lâmina para estilhaçar essa abominação que afogou Narciso. Que o corte profundo, seja de natureza rasa, para que nunca tenhamos a pretensão de vazar a superfície, já que nada mais resta além dela. Esvaindo de forma serena esse fluxo de miasmas que tornam a atmosfera nauseabunda. Uma nova formação de pele que se traveste de poros.
Essa tela é uma cabeça solta, conforme esse crânio que pende de alguma forma do coro curvado. Acéfala que me faz pensar, fazendo com que tenha a pretensão de lhe consubstanciar uma mente, e por isso eu minto. Quando a maldita dormir, tendo doces sonhos apagados, fará com que eu tenha pesadelos acesos em sinapses gotejantes, que chovem o cérebro, transbordando neurônios. O prolongamento cervical de ambos causam uma conexão vital que mergulha nas raízes de uma kundalini de versatilidade vertebrada, onde é possível dobrar-se a ponto de reinventar-se a cada momento. Caduceu de asas podadas, fixado em um chão que o faz de estandarte insignificante, diante da fertilidade que pulula a vida. Cumprindo seu papel de me reter, ao mesmo tempo absorvendo algo desse espectador que se deixa aprisionar. Mera vítima de Aracne, que seduz se fazendo Ariadne, mostrando a rota de fuga por um novelo que servirá de futura forca.