Encontro com a Morte

— Olá! Boa noite!

— Boa noite!

— Quem é você?

— A Morte?

— Deseja que eu acredite nisso?

— Em hipótese alguma.

— É bela demais para ser quem diz.

— Agradeço o elogio, muitas vezes sou temida antes de ser conhecida. Por isso a estética agressiva que me atribuem.

— Apesar do nome feminino, pensei que fosse masculina.

— Não tenho sexo.

— Mas sua forma é de mulher.

— Assim parece. Mas é apenas uma estética.

— Porque a utiliza?

— Misticismo. Já que represento esse findar da vida. Desde tempos remotos para vocês, que se chamam “Homens”, atribuem ap sexo feminino o simbolismo do mórbido. Associando as genitálias femininas ao findar da fertilidade, conforme os chamados ritos pagãos de outrora.

— És erudita.

— Caminho por tempo que nem imaginas. Mas a erudição nada me diz, mas talvez afete a você. Sirva-se dela como lhe convier.

— Porque apareceu à noite?

— Pelo mesmo simbolismo, a noite também está associada ao término, quando comparado a supremacia solar. Não é assim desde os egípcios?

— Em um gesto súbito, sacou uma adaga e cravou no corpo feminino, que não se moveu. Nem um ferimento, como se a lâmina adentrasse o ar, uma figura imaterial.

— Com mil demônios!!

— Não se assuste. Eu lhe adverti.

— Não pode ser!!

— Ainda assim é.

— O que queres comigo?

— Apenas conversar.

— Chegou a minha hora?

— Receio que não.

— Pois eu não receio.

— Que bom.

— Sairei daqui, agora. Não lhe darei ouvidos.

— Irei onde for, atormentado-o até que me escute.

— É um demônio, isso sim.

— São apenas epítetos, use o que lhe agradar.

— A morte é masculina, me recordo da foice de Chronos.

— Sua erudição é parca. Saiba que me associaram a muitas figuras, femininas e masculinas. A figura da foice seria apenas para dar ênfase ao tempo, por sua forma que os homens datam o período de sua própria existência.

— O tempo não lhe afeta.

— Nem um pouco.

— Existe Inferno?

— Não.

— E Céu?

— Muito menos.

— Vida em outros planetas?

— Suas perguntas são cômicas. O que interessa saber dos outros, já que não dá conta do próprio em que vive?

— Porque nos mata?

— Não sou eu quem faço. A vida que é frágil. Ao longo do tempo, vai perdendo seus atrativos, até sucumbir. Fico apenas observando, aguardando o espetáculo. Faço parte apenas do ato final.

— É tão sedutora que quase me torna um suicida.

— Duvido que seja. Os suicidas são menos de palavras e mais de atos.

— Não se apieda quando uma criança falece?

— E você diante da agonia de um besouro? Porque dar maior importância a uma espécie em detrimento das outras?

— Mas pelo menos, deve admitir que Deus te governa.

— Deus? Se existe um, nunca tomei conhecimento.

— Como não? Sobre qual autoridade age?

— Sobre a minha.

— E depois que caímos em seus braços, o que ocorre?

— Nada.

— Então pra que serve?

— Minha função é de ponto final. A vida é uma sucessão de pontos finais. Pense em uma reta, para você que a contempla, parece uma linha, mas ao aprofundar verá inúmeros pontos e intervalos. A vida é o ponto, eu sou o intervalo.

— Já sofri tanto com entes que perdi, culpa de seus intervalos.

— Não. O sofrimento que sente é causado por seu próprio egoísmo. Já sabe desde tenra idade que sua vida é breve e finita, é uma máxima dos que vivem. Apenas iludem-se, acreditando que seguirão sem findar-se. Mas sempre os surpreendo.

— E quem mata a morte?

— A vida. Ela não me mata, mas é a privação do que sou.

— São como duas rivais?

— Não, caminhamos juntas, feito irmãos siameses, uma não vive sem a outra.

— Deve ser triste sua existência.

— A tristeza pertence a vocês, que sofrem. Mas eu alivio o sofrer, enquanto a vida o prolonga. Nisso sou mais caridosa.

— Mas percebo que sua associação noturna vai além da ironia com a crendice, já que sua natureza das trevas, reina na escuridão.

— Percebe mal. Pra mim não existe luz ou escuridão. Apenas para vocês, que se iludem com os raios solares, isso importa. Sentem o escuro como a falta do claro. Ignoro claro ou escuro, luz e trevas. Sou independente dessas dicotomias, até ajudo a concebê-las. Já que sou a morte da luz diante da escuridão ou da escuridão diante da luz. Estou além desses fenômenos.

— Nunca pensou em ser outra coisa? Como um homem, por exemplo?

— Já pensaste em ser uma minhoca, cega, embaixo de montes de terra?

— Jamais. Apenas desejaria ser algo magnífico.

— Pois então. Eu sou magnífica, vocês homens, não chegam próximos a vermes diante de mim. Por que eu desejaria me igualar a algo tão vil?

— Sinto-me envergonhado diante de sua presença.

— Claro que sente-se, sou muito superior a você. É normal se intimidar. No seu íntimo, possui o temor de a qualquer momento poder ser esmagado, eliminado do que chama de existência.

— Suas palavras me oprimem.

— São seus próprios temores que o fazem.

— Vou acordar achando que isso foi um pesadelo?

— Se desejar fazer disso um sonho.

— Quando vou morrer?

— Cabe a você determinar.

— Eu?

— Sim. Durante a vida aparecem inúmeras formas de proceder. São as escolhas que fazem viver ou morrer, com brevidade ou longevidade.

— Mas e quanto a seres sem consciência.

— São como os com consciência. Vítimas do acaso.

— Então o acaso age sobre você?

— Sobre todos nós.

— Pode um dia ser surpreendida.

— Ainda não fui.

— Mas já vislumbrou resistências, como Matusalém, além de diversos relatos bíblicos que indivíduos que excederam a idade de vida corriqueira.

— Crendices. Todos morreram de forma breve. Hoje se prolonga um pouco mais pela ciência. Mas os seus livros de mitos, apenas servem para apaziguar angústias. Muitos dos personagens deles, só existiram na imaginação dos autores.

— Mas você aparece nos relatos, ainda retratada como no “Paraíso Perdido”.

— Me percebem, mas não me conhecem. Daí o juízo longe da realidade do que sou.

— Mas muitos a cultuam.

— Vou agir e ser grandiosa, independente desses cultos. Essas adulações tentam me ludibriar. Deveriam se preocupar com a forma enquanto existem, deixarem de pensar tanto em mim. Eu só estarei presente quando tudo que acreditam deixar de existir. È inútil dedicarem a mim tais oferendas. Só aceito receber tudo, vocês só me contemplarão quando nada mais tiverem. Sou gananciosa, não aceito barganhas.

— Qual a sua idade?

— Não tenho uma.

— E sua forma real.

— Nem conheço o que seja uma realidade. È tolice querer encontrar em mim, atributos que só podem se referir a vocês, já que só conhecem o derivado da percepção humana. Sou de natureza discreta, jamais conhecerão minha forma, nem meu nome, tentam me definir, mas não sou vaidosa a ponto de me expor. Só me permito revelar quando não podem mais contemplar, serei sempre aquilo que desconhecem, mas com a agonia de perceberem. O oculto insinuante que desejarão provar sem nunca satisfazerem essa vontade.

— Ainda assim se apresentou e estamos dialogando.

— Sou excêntrica. Sócrates teve seu demônio, porque você não pode dialogar com sua Morte?

— Minha?

— Sim, também sou um direito seu.

— E qual o meu dever?

— Viver.

— Me parece que é mais dever, a morte.

— Se vivesse eternamente, como alguns de vocês sonham, ansiaram a cada segundo por minha benevolência. A vida eterna é um terror que não faz ideia.

— Quando chegar minha hora, iremos ter outra conversa?

— Jamais. No ato final tudo estará mudo a você, como a qualquer outro. Não terá mais nem um sentido ativo, seu cérebro perderá a função, o corpo todo sucumbirá. É ilusão crer em espíritos e formas extra-corpóreas. Quando o corpo cessar, nada mais restará.

— Mas você é extra-corpórea.

— Nunca tive um corpo, não posso ser associada a tais funções. Cada vez que tentar me definir, estará adentrando um nada.

— Te sinto tão presente.

— Estou. Pensa que apenas nos entes mortos, nos acidentes cotidianos? Células sucumbem, bactérias transitam, microorganismos deixam de viver a todo instante. E sou eu atuando. Por isso sou perceptível, feito uma sombra constante. Só que sem necessidade de um sol para me guiar.

— Meus olhos lacrimejam, o coração parece oprimido.

— No seu íntimo, me percebe. Agora preciso ir.

— Está comigo e outro estão morrendo, como expôs. Como faz isso?

— Não tenho morada fixa, estou em todo lugar, ou melhor, em lugar algum. Até breve.

— Até breve.

Caminhou pela madrugada e pensou: — Sou dos poucos, senão único, que pode dizer ter visto a morte em vida.

Ao acordar, não sabia se era sonho ou realidade. Mas nunca vivenciou um segundo ao despertar de forma mais plena. Até o aspirar se tornou repleto de algo que o ultrapassava, ao mesmo tempo, causava regozijo, por saber que cada ato é único. Em cada gesto estaria flertando com aquela bela figura que contemplara. A Morte tornara-se uma companheira leal, sempre causando um novo sentido a cada emoção vivida.