Metamorfoses

Tento falar, mas sai um som diferente da boca, um grunhido. Não. É um relincho, sou um cavalo, pelo menos acredito ser. Ando sobre quatro patas, não chego a trotar, talvez seja mais um asno, defeco ao caminhar. Abano fezes com o rabo, que parece um espanador de cocô, caco e ando pra essa vida. Tomo um lambada nas ancas, um homem que fui me bate sem saber que fui um deles. Dói a chicotada de couro. Queria poder gritar. Assusto, piso num buraco, a dor imensa, quebro a perna. O sujeito carrasco esbraveja, arrancando da cinta uma faca, sangrando-me o pescoço, com movimento de serrote.

Que susto. Era um sonho. Agora não sou eqüino, mas sou um porco. No chiqueiro que fede não por minha culpa, caminho entre fezes misturadas a restos de comida. Antes um pênis cavalar, agora um falo parafuso. Outro porco se aproxima, morde-me o traseiro. Corro escorregando no chorume do chiqueiro. Agora sim solto grunhidos. Desesperados grunhidos. Sou obeso e roliço. Abre a porta, estou a salvo, corro para os braços dos homens a me esperar, me prendem, pisam em minhas patas, chega a estalar. Um velho de chapéu, saca um punhal, cravando em meu peito, direto no coração. Cada suspiro é uma fisgada, uma espécie de infarto de estocada.

Que pesadelo. Uma porcaria de sono. Caminho de forma desengonçada, sou ave, um galo, cacarejo, chego a quase cantar no terreiro. O instinto é forte, corro e trepo em uma galinha, penetro-lhe a cloaca com ardor libidinoso. Minha crista que não é mais crina, vermelho vivo. Cisco todo o galinheiro, bicando cascas de frutas, pego uma minhoca e devoro feito suculento talharim da época humana. Abrem o galinheiro, antes de correr sou suspenso pelo pescoço, a faca da mulher corta minha jugular, aparando o sangue em um, pote, fico ali morrendo sufocado, aos poucos. A vida escorre para o molho pardo.

Que angústia. Nada como acordar. Mas estou voando, livre, o vento em mim. Um leve bater de asas, já me acostumei com as penas desde a época de galináceo. Mas agora consigo planar, cortando o ar. Pio. Um piadinho fino, que se perder em eco diminuto. Já avisto o que presumo ser meu ninho, a minha fêmea aguarda com os filhotes. Carrego nas patinhas, uns pequenos raminhos. Avisto algo reluzente. Pum! Uma pancada. Caio direto ao chão, depois de ter sido alvejado por arma de chumbinho, meu corpinho se despedaça ao chocar-se com pedras. Sou caco de passarinho.

Ainda sinto as dores desse pesadelo nas nuvens, o céu belo, mas o solo é duro. Continua olhando o azul do céu. Mas agora de forma mais vagarosa. Pastando, ou melhor, ruminando esse capim. Que sabor a natureza tem. Sou boi, num pasto, defecando e ruminando, ruminando e defecando. Avisto uma vaca, vou me dirigindo com intenção de montar, voltei a ter culhões mais volumosos. Sou direcionando ao curral, entro na fila, quero aquelas soberbas tetas de leite. Estou preso entre tabus, não consigo mover. Sinto um golpe forte no crânio. Um homem forte me acerta com uma marreta, uma, duas, três, não sei mais quantas vezes.

Essa enxaqueca é sintoma do pesadelo passado. Animalescos momentos. Que coceira me toma, uso as patas para coçar. Meu olfato é aguçado, sinto longe o cheiro de comida. Estou suando pela língua. Que vida de cachorro. O saco coça, uso a língua pra acalmar a coceira. Que sensação boa, se na época de homem eu alcançasse a genitália com a boca, seria fantástico. Meu rabo abana sem parar, ando me equilibrando com ele. Escuto ao longe alguém chamar, corro latindo com agressividade. Que cheio é esse que me toma. Uma cadela no cio. Grudo nela até inchar, ficamos selados por longo momento. Uma vida de cão prazeirosa. Outros cães invadem meu território, travamos batalha, levo e dou mordidas, estou com feridas abertas, caio no terreno sangrando. As pessoas da casa rústica, vem averiguar. O chefe da casa diz que é preciso sacrificar, esconde as crianças, se aproxima, aperta o gatilho de um pequeno revólver. Sinto a bala perfurar a cabeça, acho que senti escorrer massa encefálica.

Mais uma vez no céu, mas agora é noturno, meu bater de asas é diferente. A visão é estranha. Sou morcego em busca de frutos. Cravo as presas e sugo a frutinha. Outros vem copiar o gesto, parecemos uma numerosa família. Ver o mundo de ponta cabeça é inusitado. Sinto um golpe. Uma pedrada de um garoto, caio e sol alvejado, várias pedras me estraçalham.

Vários sonhos bestiais. Voltando a pastar, nesse instante sou um bode. Não serei montado como na época de asno, menos um fardo. Cago em bolinhas, as crianças acham uma gracinha. Ando exibindo meus cornos. Um sujeito se aproxima, me agarra pelos chifres. Caio esparramado. Retira uma faca e me sangra com força, dizendo que precisa aproveitar a carne e o couro.

Que sede tremenda. Beber água pode melhorar os sonhos. Abaixo a cabeça num pote, a língua lambe a água e joga-a dentro da boca. Tento falar, mas mio. Andando com delicadeza, desviando com leveza. Começo a ronronar. Os dedos coçam, raspo eles no carpete da sala, as unhas ficam expostas, até ouriço alguns fios com a potência da garra. Escuto um som, devo ser morto novamente. Saio correndo em disparada. Um choque violento, sou atropelado, o corpo esmagado ao meio. Mal consigo respirar, logo irei espirar.

O céu veio abaixo, vejo mais azul o mundo, água não me falta, vivo nela, sou peixe. Tenho cada movimento rápido, como pequenas algas, ando em cardume, meu sentido social. Enquanto humano, mal respirava dentro da água, agora nem respiro fora dela. Avisto uma presa mais suculenta. Mordo. Sou perfurado, sangro, depois içado. Um pescador me joga no canto de um barco pequeno, sangro e ao mesmo tempo ofegante por falta de ar, os olhos abertos imploram por mar.

Que velocidade tenho, estou voando muito rápido. Sou inseto zunindo pelos ares. Pousando em restos de comida, expelindo um vômito ácido para digerir o alimento sólido e absorvê-lo. Sou uma mosca alcoviteira, voando em zigue-zague. Uma panca de palmas de mãos me esmaga.

Morrendo em cada sonho. Me sinto aprisionado, livre apenas por instantes animais. Continuo veloz, mas agora sorrateiro. Me esgueirando pelos cantos de um balcão, um camundongo, os dentes desejando roer algo. Alguém grita ao meu ver. Tento um buraco qualquer, só para sobreviver. Mas a pancada da vassoura foi mais rápida, fiquei tonto e recebi várias outras, até um pedaço de pau me dividir em duas partes. Não fui sagaz como o Ligeirinho.

Menor ainda, continuo em lugares escuros, mas agora tenho asas. Sou barata, gritam de novo. Gente mais histérica. Começo a voar, mas sou recebido com chineladas, até tombar. Um pisão de um obeso vem me liquidar, sinto as entranhas esparramarem. Acho que em outra ocasião fui besouro, algo assim me vem à mente, creio ter sobrevivido por mais tempo.

Acordarei como agora? Que loucura essas aventuras oníricas. Já não bastasse ter vivido como animal homem, agora sonho como animal homem se fazendo passar por animais outros. Faço um som alto, até incomoda. Sou uma cigarra, acabo caindo da árvore, uma motocicleta me esmigalha. Noutro momento fui lesma, tão lerda que um cão me comeu. Já quando atrevi ser mariposa, uma menina me capturou, arrancou minhas asas, me deixando ali caída, devorada logo após por formigas.

Vou nadando de novo, o mar voltou a ser meu,. Agora consigo causar grandes ondas, ao respirar solto esguichos violentos. Uma baleia, com meu corpanzil, abro a boca e vou engolindo tudo que consigo, água, peixes, algas. Que dor, várias dores de perfurações. Pescadores enfiam-me seus arpões, sangro que torno uma parcela do mar vermelha. O mar salgado chora por minha desgraça.

Me vingo em outra forma, tubarão feroz, arranco a perna de um surfista, mutilo e deixo com hemorragia. Mas sou logo após atacado, tantas estocadas, ele foi salvo, eu não obtive êxito. Noutra noite fui foca, virei isca de baleia. Quando quis ser pato, acabei uma panela, ensopado.

Que alegria, habitante da floresta, Raposa sorrateira, ando em busca de um aperitivo. Droga. Caí numa armadilha. Estou presa, sem ação, cortam em volta de minhas patas. Não acredito. Arrancam minha pele comigo ainda viva, mesmo os sons que solto, poderiam ser entendidos por ouvidos de outra espécie. Sofro muito, mas é pela causa dos casacos de pele, sou uma mártir do consumismo.

Troquei de sexo, que dor ser gata de um gato, o pênis felino me sangrou no coito, agora entendo por que gritam. Só agora entendo que já fui vírus, bactéria. Mas quase nem pude sentir, momentos rápidos que me vieram. Até ácaro foi possível me fazer existir. Como carrapato fiz sangrar, como pernilongo fui vampiro até o inseticida me fulminar. Como rã me dissecaram, como gambá me chutaram, como planta me arrancaram. Sim, Fui vegetal também, e uma vez querendo ser rosa, acabei podado.

Agora parece engraçado, quando fui verme e saí de um cu. Berne que penetrava em carnes. Molusco, depois um pouco mais protegido como crustáceo. Que peso. Sou um paquiderme, ando com essa tromba, que uso para comer, sugar água. Derrubo árvores frondosas com minhas força, meu marfim é opulento. Vários tiros, contrabandistas de marfim. Arrancam as presas, ainda estou vivo, mas os felinos aproximam para o banquete.

Mudei de lado, sou hiena, grito de forma irônica. Me aproveito das sobras, ataco em bando, tenho espírito de grupo. Mas me perdi do bando. E agora, o que faço? Atacado por leões, estraçalhado. Volto como guinu, um crocodilo me abocanha, arrancado-me pedaços. O que adianta ser crocodilo, morto com tiros, mais uma produto de vitrine. Sofro as mortes e não contemplo o que fazem de meus corpos.

Que velocidade de guepardo, membros articulados para correr, já fui onça, lince, vários tipos de felino. Morto como troféu de tribos, se vangloriam com meu trágico destino. Rinoceronte, hipopótamo, tamanho, peso, presas, força, acabo massacrado. Vou de galho em galho, sou um macaco, preso em rede, vendido em caixote, morrendo de calor, asfixiado na beira de uma estrada.

Dessa vez sinto que continuo dormindo. Não. Estou hibernando, um tremendo urso. Que acorda em busca de comida, a fome é tremenda, depois desse descanso prolongado. Piso em uma armadilha, tenho a pata mutilada, sangro até morrer, soltando urros de sofrimento. Que saudade da época de logo, a alcatéia me acolhia. Uivávamos para a lua, causávamos pânico em rebanhos. Sou todos e não sou nenhum. Papagaio que tentou voltar a humanamente falar. Me atrevi a ser touro, acabei numa tourada, a espada me sangrando, o público aplaudindo e eu ali chorando em um olho e mugindo.

De raiva acabei metamorfoseando em escorpião, morria mais picava, como abelha e vespa dei minhas ferroadas. Agora subo paredes, tecendo minha teia, pegando insetos desprevenidos, mas logo sendo morta a vassouradas. Me fiz de lagartixa, comi muito mosquito. Bastou uma reforma na casa, já estava toda picotada, meus pedaços ainda mexiam. Como ave de rapina tinha status, ao envelhecer era atacado, deixado, se fosse coruja era considerado maldito, como águia caçado por violentos predadores, sendo falcão, me fizeram leva e trás, até num fio ser eletrocutado. Em forma de cobra, quantas vezes perseguido feito o demônio, não sossegaram até me destruírem. Não sei mais o que faço, só quero tentar voltar a ser gente, morrer feito outros que vi falecer, talvez consiga a morte final voltando a ser o que de fato eu fui um dia.

Nem acredito que despertei. Porque enxergo tantas cores? Pavão? Me digam se algum dia eu acordei?