A noite sem som.
Muitas destas histórias fantásticas existem na sabedoria mística popular; alguns preferem chamá-las de lendas urbanas, outros, de fantasias débeis.
Era janeiro e chovia forte. A chuva ferrenha não detinha o calor, que poderia fritar os pensamentos do homem mais frio. O barulho da chuva que, nalguns causa sono morfídico, mantinha-me ainda mais acordado, agitado, como se esperasse por algo incrivelmente terrível. Meus olhos giravam em qualquer sentido, e em nada paravam por muito tempo. Estava escuro, e a vela, que pouco iluminava, estava já pelo fim. A casa vazia, nestas horas parece abarrotada de alguma energia natural, que vem do clima e das águas da chuva, feita de desolção e torpor.
De súbito, o barulho da chuva cessou; silêncio absoluto. Mas a chuva não parou, nem os ventos, nem nada. Por um instante pensei estar nalgum estado hipnótico ou algo semelhante, e que seria passageiro. Então, pronunciei meu próprio nome, alto, e nada ouvi. Pasmei. Sentia as cordas vocais vibrarem, mas não percebia som algum! Todos os demais sentidos me etavam intactos, concluí.
Não é possível para alguém imaginar a mescla de sentimentos medonhos que se apoderaram de mim nesta hora, nem me é possível descrevê-los com precisão, até porque, hoje, lhes tenho uma falsa lembrança, penso.
Crendo achar-me realmente doente, empreitei então em chamar por ajuda. Andei apressado pelos aposentos da casa até a porta dos fundos, abrí-la; a chuva invadiu a casa. Corri o mais depressa que pude até os vizinhos mais próximos, que não eram deveras tão próximos, e bati freneticamente na porta da varanda. Ninguém atendia. Tentei a janela da esquerda, sem êxito... Desconsolado, prostei minhas mãos na vidraça para observar o interior da varanda. Que visão! Estavam todos lá, inertes como estátuas! O filho mais novo olhava a chuva pela outra janela, e o mais velho puxava pela corda um carrinho de madeira; a mãe, seguarava o vestido como estivesse enxugando as mãos, enquanto o pai adentrava no aposento pela porta lateral. Mas nenhum se movia, nenhum movimento evoluía!
Comecei agora a crer estar louco. Desesperei-me de fato. Surdo e louco! E a chuva não cessava...
Afastei-me aos poucos da janela, lentamente, pois já não fazia sentido correr. Segui andando, por algum tempo que não faço idéia o quanto, pela estrada deserta. Andei e andei, até achar-me diante de outra casa, humilde e pequena. Aproximei-me; não haviam luminárias acesas. Dei a volta até o outro lado, e observei por uma pequena vidraça. Era um quarto. Duas crianças dormiam enquanto uma mulher, a mãe provavelmente, lhes contemplava o sono de uma cadeira de vime; todos igualmente inertes.
O pavor foi sendo-me substituído por tristeza; sem dúvida eu estava louco, e na chuva. Decidi então voltar à minha casa e esperar que amanhecesse e alguém, dando por mim falta, fosse até lá. Assim procedi, voltei para a casa, ainda completamente surdo. Contemplei a chuva por uma última vez antes de recolher-me ao abrigo, e então segui para o interior da casa, e dali para meu quarto. Enquanto atravessava a sala, otei então algo que eu não havia notado antes: o relógio de parede, do qual grande pêndulo de metal pendia, estava parado. Eu sequer poderia saber quanto tempo faltava para amanhecer! Que noite!
Estava ali, pensando em toda a minha desgraçada loucura, quando, de repente, o relógio estilhaçou-se como se de vidro fosse diante dos meus olhos, atirando-me ao chão com o tremor que fez nos ares, feito uma enorme turbina. Depois, seguiu-se um aterrador trovão! Eu sentia novamente o som entrando pelos meus ouvidos e chacoalhando a minha cabeça! Uma mistura estranha de alívio, pânico e susto tomara conta dos meus nervos afinal.
Eu ainda nem havia me erguido do chão e amanheceu; frações de segundos e a chuva cessou e o sol raiou. Toda a noite se desfez, e com ela a chuva. Além do relógio quebrado, nada mais de anormal.
Banhei-me, vesti-me, e fui trabalhar. Pelas ruas, a vida rotineira. O jornaleiro, os carros... Tudo como sempre foi. Analisei a hipótese de relatar minha noite e experiência para alguém, mas só serviria para chamarem-me louco ou bêbado.
Não consigo compreender o que aconteceu; pesadelo não foi, pois o relógio permanece lá, destruído. Talvez um fenômeno onde o tempo parou, ou talvez, só uma mentira minha.
Viki.