"O OLHO DE VIDRO"
-Era um olho de vidro, quase inútil, não fosse sua capacidade de mover-se para todos os lados por algum músculo remanescente no fundo da órbita. "Olhava" de frente, de lado, bisbilhtava. Era versátil pois acompanhava o dia a dia de seu senhor, mas alimentava o desejo de ser independente como todo escravo. Tinha defeitos como todo olho, mas queria ver só o que o interessava, os passarinhos, as árvores, a natureza enfim, o resto só via de relance e com certo desdém.
O olho era ôco, tinha uma íris escura, pousada num fundo opalino e uma pupila inquisidora, negra como carvão, como se perscrutasse o
futuro, não tinha grandes ambições por saber-se olho de vidro.
Não fazia questão de demonstrar bom caráter, nem fazia amizade com o outro olho, o do lado direito, o olho são, auto-suficiente, antipático.
Fazia-se mordaz, irônico nas horas cruciais e nos momentos de perigo, escondia-se sob a pálpebra que se cerrava, queria passar despercebido, certo de que o olho bom daria conta do recado.
Volta e meia o olho de vidro escapava da órbita e tinha intenção de fugir, libertar-se, mas era apanhado do chão, lambido e posto na órbita. Estava um tanto arranhado pelos tantos tombos que levava, e permanecia contrariado na cela viscosa e de vez em quando adormecia sonhando com dias melhores.
Certo dia presenciou um ato criminoso, guardou-se em copas por puro desejo de manter-se fora de intrigas e teve vontade de estilhaçar-se, desaparecer.
Um dia apaixonou-se por um olho de acrílico, azul claro, lindo..., era um olho brilhante, e então os olhos se encontraram, foi amor à primeira vista, enamorou-se num relance. A partir desse dia nunca foi o mesmo, bastava lembrar-se do olho azul que precisava de uma lágrima para banhar-se. Estava disposto a ganhar o mundo, escafeder-se de vez e quem sabe encontrar-se com sua paixão.
Aguardou uma piscadela atravessada, saltou da órbita e rolou apressado para um bueiro e não foi encontrado por mais que se procurasse entre dejetos e baratas, lá permaneceu escondido até que uma chuva o levou para o mar. Viveu feliz e livre entre peixes, algas e areias e de vez em quando lembrava-se do olho azul de acrílico e suspiava de saudades.