Fato Incomum
Noite daquelas cotidianas, onde caminha-se de forma despreocupada, desejando chegar ao lar, após um dia considerado comum, sem pretensões em relação aos fatos advindos. Aquele caminhar solto, que faz o corpo mover-se por uma força que ignoras, não pressupõe compreender a causa, deixa-se levar. A..., naquela penumbra, estava acompanhado apenas de si, quando percebeu uma movimentação alheia, o temor que as trevas causam aos acostumados pela revelação da claridade, causa desconforto ao depararem-se com o inesperado, não que esse fosse algo desconhecido, tendo em vista nossa ignorância em relação ao que foi, ao que é e ao que será.
Ainda assim, A... sentiu um temor invadir-lhe o âmago, aquela sensação que antecede a tragédia, pois costumamos antever a crise, ainda mais em uma noite de ruas vazias, sem uma companhia para causar maior segurança pelo tenebroso trajeto. Eis que escuta o estampido, sentindo algo acertar-lhe, caindo em seguida, deparando-se apenas com pernas se afastando, sumindo em meio à escuridão. A consciência lhe diz que foi abatido, caíra feito presa atingida, sua condição era de término, alvejado sem saber o motivo e nem ter podido averiguar a face do executor.
Os pensamentos puluam em meio aos sentidos que começam a fraquejar, seu desespero maior é o de estar só, não importa o fato de ter sido morto, ou quase, tendo em vista ainda estar consciente. Recorda-se dos que lhe são caros, dos motivos rápidos que causaram o afastamento das pessoas, deixando ali caído, sem um “quem” que pudesse ampará-lo, nem um traseunte apareceu para servir-lhe de consolo, saindo da existência de forma solitária. Tudo que desejava naquele último suspiro, era o aparecimento mesmo que breve de qualquer um que tivesse feito parte de sua história. Só que ninguém lhe apareceu.
A visão escureceu, agora morrera de fato. A penumbra tomara conta de seu ser, mergulhado em meio a um universo taciturnamente escuro, as memórias ainda eclodiam, causando angústia, sabia que ultrapassara o limite da vida, não mais poderia retornar, reviver os entes queridos, deveria conviver com a solidão absoluta, solto no espaço vazio, contemplando a escuridão infinita. Gozava apenas do pensamento lembrado, uma recordação que confortava e ao mesmo tempo oprimia, servia de consolo como forma de resquício, também era doloroso por reafirmar o não mais reatado.
Abre os olhos, A... não sabe dizer quanto tempo se passou, parecia algo breve, talvez fosse um sonho, que alívio ter acordado. Seus olhos vasculham o ambiente, apesar de ter retornado ao mundo dos vivos, estava em um cenário diferente do qual recordava. Seus olhos procuram de forma ansiosa por aqueles que deixara antes da tragédia sonhada, mas percebe presenças não conhecidas, perambulando naquele ambiente pungente. Sente que talvez nem tudo tenha sido um sonho, poderia ter sido realmente ferido, sendo tratado por estes que via de longe.
Tenta se mover e não consegue, nem uma leve mudança de posição no pescoço, não conseguindo contemplar nem mesmo seu corpo. Pensara que poderia ser efeito do trauma sofrido, deveria estar em repouso, quem sabe sob cuidados médicos, mas não estava em um hospital. Talvez estivera em coma por algum tempo, agora estava em processo de reabilitação, necessitando excessivos cuidados, ou pior, poderia ter perdido os movimentos, dependendo da gravidade causada pela lesão do projétil. A situação era realmente crítica.
Uma mulher se aproxima, possui feição jovial, um sorriso cativante, amparando um prato com as mãos, senta-se ao lado, o corpo de A... deitado, o olhar voltado pro alto, contemplando aquele teto com as telhas expostas. Tenta fazer algum gesto, mas não consegue, procura falar, dizer quem é, perguntar o que houve, sua voz parece tão paralisada quanto o restante do corpo, só os olhos mexem. Tenta através de movimentos orbitais expressar sua angústia, já que lhe disseram “os olhos são o espelho da alma”, talvez pudesse externar por eles, deixar que aquela sensível mulher o captasse.
Os olhos de ternura femininos pousavam impassíveis, sua mão com gesto delicado colocava comida em sua boca, era algo pastoso, desagradava seu paladar, preferia um suculento naco de frango, mas aquela gosma insosa, nem podia rejeitar, era empurrada goela abaixo, algumas vezes um pouco quente, fazendo queimar-lhe a língua. Língua essa que rejeitava vibrar, não proferia sons, estava apenas relegada à papilas gustativas e sensibilidades acerca da temperatura do alimento.
A inesperiente enfermeira, abraçou-lhe com força, sentiu teus fartos seios esprememerem contra seu peito, aquele permufe caseiro de mulher, essência barata misturada a secreções e odores da culinária. Fora colocado sentado, em frente a um espelho imenso que estava disposto junto ao guarda-roupa, de frente para os pés da cama. Nessa hora o horror invadiu A..., não era ele que estava ali, não sua forma conhecida. A imagem refletida era débil, jamais comparada ao seu vigor de outrora.
Seus membros atrofiados aludiam à limitação de movimentos, sua feição era de retardo evidente, conforme contemplara tantas vezes durante sua vida, mas o que lhe estarreceu foi o corpo infantil. Tornara-se uma criança de novo, não saberia dizer como seria possível, quais condições o levaram a tal forma, perdera sua maturidade, retornando a um estado precoce, ainda mais limitado, agora preso a um corpo “deficiente”. Tentou chorar, mas não conseguiu. Revelar quem era, não poderia, se o fizesse, talvez não adiantaria. Inconformado, tentara alimentar o desejo de recuperação da antiga condição, mas o espetáculo vivido, demonstrava algo além de sua competência.