DESVENDANDO O PASSADO....
(capítulo do meu romance intitulado "CECÍLIA", escrito entre 1998 e 2006)
Cecília saiu da casa de Nenê toda contente. Fôra buscar o quadro da cigana que a amiga hospedara por cinco anos. Reservara um local na parede do seu quarto só para ele. A Cigana dos Olhos Cor de Mel – La Gitana, como foi denominada na obra – estava novamente perto dela.
Subiu no ônibus com cuidado, zelando pela integridade da moldura, e percorreu o caminho até sua casa ansiosa por lá chegar e colocá-lo de frente para a janela, como se aquele desenho em bico-de-pena fosse um guardião de seu dormitório, velando seu sono e sua intimidade.
Mal chegou no apartamento, acendeu um incenso de rosas. Adorava o aroma dos incensos e costumava usá-los diariamente para perfumar e purificar os ambientes. E – ela bem o sabia – os ciganos gostavam de aromas florais.
Após ter colocado o quadro no seu devido lugar, sentou-se na cama e olhou-o demoradamente, enquanto falava:
- Novamente comigo, minha cigana... Agora para sempre...
De repente, estranhos episódios surgiram à sua frente, como que numa tela cinematográfica.
Um vasto e verde campo repleto de arbustos floridos. Atrás de um deles, um casal, como se estivesse escondido e temeroso: uma cigana e um cigano, que se acariciavam docemente e continham no olhar amor, desejo e ternura. Cecília reconheceu-os de imediato. O mesmo casal cigano que bailava, tempos atrás, numa de suas visões. Ela e Cláudio.
Pôde ouvi-los dizer:
“-Temos que tomar cuidado para que ninguém nos veja”
“-Meus parentes conspiram contra ti, amor. Sou prometida a outro homem!”
“-É difícil esconder o que está diante dos olhos e dentro do coração, Luna... Não consigo estar perto de ti sem poder olhar-te e tocar-te, tendo de ocultar meu desejo.”
“-Sabes quais são as regras, Príncipe Sol... Se descobrirem, hão de nos separar e sabe-se lá o que farão contigo, amor... e o que farão comigo...”
“-Morrerei por ti, se necessário. Lutarei por ter-te comigo, nem que seja a última coisa que farei na vida!”
Cecília, olhos fixos na parede que se transformara em tela, a tudo assistia, deslumbrada. Outra cena descortinou-se a seus olhos. Uma velha cigana, sentada num banco forrado de veludo vermelho, continha em suas mãos um estranho objeto que ela passava de uma mão para a outra, sem parar, enquanto dirigia-se à jovem cigana:
“-Luna, apressa-te em terminar teu idílio com o Príncipe Sol, ou serás banida de teu povo para um lugar de onde não mais voltarás. Tramam contra ti e contra Sol. Já são conhecedores do amor que os une, Luna.”
“-Mirella, doce Mirella, Sol é a razão de minha vida. Dele espero um filho, que jamais renunciarei. Ajuda-me, por favor!”
“-Como posso ajudar-te, Luna? De que forma?”
“-Ajuda-nos a fugir daqui... Refugia-nos num lugar onde não possam encontrar-nos.”
“-Eles te encontrarão em qualquer parte, Luna, e a morte de Sol será decretada se fizeres isto... Queres que Sol morra?”
“-Como nos encontrarão? Se preciso for, sairemos do país...”
“-Esqueces que eles têm meios fortes para descobrirem o esconderijo? Esqueces que Niesha cobiça o teu Sol faz tempo e não relutará em trabalhar na magia para separá-lo de ti? Nem que seja para entregá-lo à morte?”
“-Então foi Niesha que revelou nosso segredo a meus parentes? Foi ela, Mirella?”
“-Jogou a semente venenosa que há de pôr fim ao teu romance...”
“-Como posso desposar Ívano, estando grávida de Sol e amando o meu príncipe mais que tudo?”
“-Não mais desposarás Ívano, cara Luna. Ele te rejeitará ao ver-te esperando um filho de outro homem... e não hesitará em perseguir Sol por onde quer que ele vá!”
“- Pelos Céus, Mirella... Ajuda-me a fugir daqui!!!”
Cecília continuava com os olhos pregados na tela mística. Presenciou todo o sofrimento de Luna ao perder a criança depois de uma surra dada por um de seus íntimos e a agonia dela ao ver seu amado Sol ser expulso humilhantemente da tribo, sob os olhares acusadores dos ciganos e o sorriso triunfante de Niesha. Agarrada à Mirella, Luna, em prantos, balbuciava:
“-Minha luz, meu Sol, não me abandones... Hei de amar-te por toda a Eternidade!”
“-Minha doce Luna, acalma-te e dê graças aos Céus por terem poupado a vida de teu amado. Ele estará longe de ti, porém vivo... e nisso está contida a esperança de tu tornares a vê-lo... Acalma-te e agradece aos Céus!”
Luna, confinada na tribo, chorava noite e dia. Mirella, sempre ao seu lado, pois fôra designada a ser sua guardiã, confortava-a constantemente e, para que o tempo não custasse tanto a passar, começou a iniciá-la na arte da predição pelas cartas. Ívano escolhera outra mulher para desposar e já não era mais uma ameaça. Niesha, esta sim, ainda representava um perigo na vida do casal cigano. Mirella, no entanto, esperava a poeira baixar para poder dar início ao seu plano.
“-Luna, aguarda que está próximo o tempo em que verás teu príncipe Sol.”
“-Como?! Como, Mirella? Fala-me!”
“-Escutei de teus íntimos uma conversa e apurei os ouvidos para saber do que se tratava. Descobri onde aonde se encontra o teu amado!”
“-Mirella, tantas luas se passaram desde que Sol foi banido... Crês que ele ainda me quer?”
“-Consulta as cartas, Luna, e terás a resposta...”
“-Nada consigo ver, querida Mirella... Tudo fica envolto numa cortina cinzenta e não consigo decifrar nada...”
“-Sim... porque deixas a emoção tomar conta de ti, impedindo que ouças o que as cartas dizem...”
“-Coloca-as para mim, Mirella... Revela-me se Sol ainda me ama...”
“-Tranqüiliza-te, doce Luna, que tu reinas inteira no coração de teu bem-amado.”
“-E como farei para encontrar-me com ele?”
“-Acaba o tempo do teu confinamento, Luna. Já não és mais a prometida de Ívano e este já desposou Sarita. Teus íntimos precisam de ti e de tuas habilidades manuais para que tragas sustento para a tribo. Não demora muito e eles pedirão para ires vender teus objetos nas estradas e na entrada da cidade...”
“-Serei livre novamente... E tu? Estarás a meu lado?”
“-Não hei de separar-me de ti, doce Luna, já que confiam em mim e designaram-me para vigiar-te!”
“-E Niesha? O que fará Niesha se perceber tudo?”
“-Cobrirei os olhos da traidora e ela de nada desconfiará, podes estar certa disto. E, se desconfiar, será num tempo em que nada poderá impedir o reencontro de vocês dois.”
“-Mas... e se ela voltar a trabalhar na magia... o que poderá acontecer?”
“-Esqueces que somos eternos? Que sempre damos continuidade às nossas vidas? Sossega teu coração, Luna. Ainda haverá muitos encontros e desencontros com teu bem-amado, mas sempre o sentimento se fará presente, em qualquer época das existências...”
Cecília a tudo via e ouvia, perplexa. A longa estrada de terra batida; o caminhar de Luna e de Mirella, ambas com cestos de vime nas mãos contendo objetos artesanais e, sob eles, mantimentos e algumas peças de roupa.
“-Eis que chegou a hora, Luna. Prepara-te para reveres o teu príncipe. Temos um aliado que conseguiu para nós uma charrete. Ele nos espera depois da segunda encruzilhada.”
“-E quem é ele, Mirella? Podemos confiar?
“-Lembra-te de Oman, o menino branco adotado pelos íntimos de Sol? Foi ele quem nos conseguiu a charrete...”
“-E ele nada falará, não é?”
“-Oman é o mel tirado das abelhas. Doce e puro que só quer fazer justiça a ti e ao irmão de criação. Agora está um belo rapazinho e livre de qualquer suspeita. Quando Sol foi banido ele era um menino e nunca, nem teus íntimos e nem os íntimos de Sol, podiam imaginar o quanto este episódio marcara a vida do pequeno Oman.”
“-Se algo acontecer a ele, jamais me perdoarei, Mirella!”
“-Nada irá acontecer... tudo está escrito... a vinda de Oman para o convívio da tribo teve sua razão de ser, doce Luna!”
Cecília viu a charrete já envelhecida puxada por um cavalo marrom. Ao lado deste, uma rapazinho de uns 15 anos, vestido com uma calça branca e um corpete verde-escuro, pés descalços e uma tira vermelha envolvendo a testa, que sorriu ao ver Luna e Mirella.
O cenário mudou. Cecília viu as duas mulheres à beira de um riacho, sentadas sobre uma pedra, como que à espera de algo. Atrás delas, montado num cavalo baio, um homem observava. Era Sol que, ao vê-las, desceu do animal e encaminhou-se apressadamente ao encontro de ambas. Ao sentir os passos atrás de si, a cigana Luna voltou-se, sob o olhar e o sorriso de Mirella.
“-Meu príncipe Sol... meu príncipe amado!”
Sol abriu os braços e Luna correu para ele, que a abraçou, envolvendo-a toda. O mesmo abraço de Cláudio ao abraçar Cecília. E as palavras ditas pelo cigano foram as mesmas ditas por Cláudio quando de seu reencontro com ela, numa certa madrugada:
“-Que saudade, que saudade!”
Cecília ouviu Mirella, num sorriso, balbuciar:
“-O destino está sendo cumprido...”
Novamente o cenário se modificou. Cecília viu uma outra cigana, uma mulher de seus 35 anos, vestida com uma saia estampada de rosas amarelas num fundo azul-escuro. Tinha nos olhos um brilho estranho, misto de vingança e de ódio. Era Niesha, que segurava um punhal dourado na mão direita e, na esquerda, um galho de ervas do campo. À sua frente alguns símbolos que Cecília não soube identificar, mas, pela vibração do local, eram símbolos de uma energia muito negativa. Levantando o punhal e o galho, a cigana ceifou a planta, enquanto praguejava:
“-Que a maldição caia sobre vocês, Sol e Luna. E assim como este galho está sendo ceifado e separado folhas do caule, assim também sejam ceifadas e separadas as suas vidas!!!”
Uma lágrima rolou no rosto de Cecília. Seu passado, ali, diante dela, sendo desvendado. Quem seria Niesha em sua vida atual? Quem seriam Mirella e Oman? E quem morreria pela maldade de Niesha?
A resposta lhe foi dada na cena seguinte. O cigano Sol voltava de uma ida à cidade e galopava para ir ao encontro de Luna e Mirella, que o aguardavam no pequeno acampamento que haviam improvisado junto ao riacho. Ao vê-lo, Mirella estremeceu.
“-O que há, Mirella? Por que está assim, branca como um lírio e trêmula desse jeito?”
“-Que Deus se apiede de Sol e impeça o que está por acontecer!”
“-Por favor, Mirella, não me assuste... o que está havendo?”
Mirella nada falou, mas olhou em direção de Sol e as duas viram o cavalo baio do cigano empinar-se, agitado, como se estivesse assustado com alguma coisa, e Sol tentando controlá-lo e colocá-lo em posição correta. Cecília ouviu o grito de Luna.
“-Tome cuidado, meu príncipe! Dome seu cavalo!”
O cigano segurava fortemente as rédeas e ordenava que o cavalo sossegasse, ao mesmo tempo olhava ao redor para ver o que estava fazendo o animal ficar daquele jeito. Olhou para o chão e viu uma cobra já em posição de bote. Tirou o punhal da cintura e quando ia saltar do animal para eliminar o réptil, o cavalo-baio empinou mais uma vez, jogando-o no chão, em cima do seu próprio punhal, que o feriu mortalmente no coração, enquanto a cobra fugia, assustada pelo movimento.
Ao ver seu amado caído, inerte, Luna correu até ele, acompanhada de Mirella. Uma poça de sangue rodeava o cigano, que tinha os olhos semi-abertos e que, ao ver Luna, sussurrou:
“-Acabou... estou morrendo... Mirella, cuide do meu amor... Luna, minha doce Luna, a eternidade me espera... e eu te espero na eternidade... para te fazer feliz sempre...”
E, com a cabeça deitada no colo de Luna que, desesperada, gritava para que ele não morresse, o cigano príncipe Sol exalou seu último suspiro, pondo fim ao romance tão sofrido e intenso dos dois naquela existência.
Esta fôra a última visão de Cecília, que despertou de sua “viagem” aos prantos. O quadro da cigana – ela mesma – parecia olhá-la e dizer: “Eis aí o teu passado. Compreendes agora o que te liga a Cláudio? Compreendes porque ele te faz tão feliz, mesmo sem o saber? Uma promessa feita na hora do desenlace é para ser cumprida por todas as vidas, pela eternidade. É esta a missão de Cláudio para contigo. Realizar teus sonhos, fazer-te feliz. Por isso dirigiu-te outra vez em direção ao que tua alma mais ama: a música! Por isso tu, Cecília, exerces nele um fascínio que nem mesmo ele consegue explicar. Por isso tu, Cecília, te sentes tão atraída e misteriosamente encantada por ele... Eis aí o teu passado como Luna, a Cigana dos Olhos Cor de Mel.”
Cecília também entendeu o porquê daquele quadro ter voltado para suas mãos. A ninguém mais ele poderia pertencer, já que retratava a ela própria.
O cheiro do incenso de rosas recendia pela casa inteira. Cecília aspirou-lhe o perfume, lembrando-se de suas visões. Sentiu saudades de Cláudio e ímpetos de procurá-lo, mas sabia que não deveria fazê-lo. Quem sabe Teresa não teria dado o seu endereço para ele? No entanto, sua consciência pesava-lhe. Teria ela o direito de desejar isso? Apesar de terem sido um do outro numa vida anterior, a vida atual era diferente e ela não deveria usar Teresa para aproximá-lo de si. Seria uma atitude abominável, não condizente com a beleza do amor que unira os dois, um dia.
Olhou mais uma vez o quadro da cigana e afagou-o por sobre o vidro da moldura. Agradeceu.
- Obrigada, meus Mestres, por devolverem este desenho para mim... e por terem desvendado uma de minhas vidas...
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