Vem comigo?


Já está anoitecendo, e o frio, aos poucos, começa a me incomodar. Fecho a janela, acendo a lareira e me sento em minha velha poltrona, já gasta por agüentar meu peso excessivo por tantos anos. Puxo um cigarro do bolso e procuro meu isqueiro. Sei que um homem da minha idade deveria se preocupar com a saúde, mas a verdade é que eu estou pouco me lixando.
 
Estendo a mão e levo à boca a caneca com o café amargo e frio que eu preparara uma hora antes, alternando os goles com as tragadas do fumo. Nunca levei jeito para a cozinha, nem para a maioria das outras coisas. “Que cara chato e deprimente”, você deve estar pensando. Com toda a razão. Antes, a minha vida até poderia ter algum sentido, mas não consigo mais trazer luz para iluminar meus pensamentos, distorcidos por estarem a tanto tempo vagando sozinhos nas sombras. Nem sei por qual motivo estou dizendo isto, já que acho que ninguém pode me ouvir agora. Exceto ele.
 
É, aquele garoto. Uma presença inconveniente me observando o tempo todo, sempre a rabiscar num caderno de capa azul. Já nem me lembro mais do dia em que apareceu pela primeira vez, mas jamais consegui me livrar dele. Sempre que tento falar, é como se ele entendesse cada palavra dita, mas me ignorasse. Acho que devo estar ficando louco. Ou talvez eu sempre tenha sido, não sei dizer.
 
Faz anos que não saio do meu vilarejo para nada. Evito pôr os pés para fora de casa, e quando o faço, é apenas para ir ao mercado ou pagar as contas. Consigo viver razoavelmente com a minha aposentadoria – graças a Deus não preciso mais trabalhar. Minto, não é graças a Deus, é graças a mim, ao meu esforço. Deixei de acreditar numa força superior há tempo, desde que aquela febre horrível a levou. Ah, que saudades da minha querida Elisa. Agora não me resta mais nada... exceto aquele pivete, que insiste em olhar para mim e continuar a escrever calado, como se eu fosse a razão pela qual ele despeja aquelas palavras nas folhas brancas.
 
– Você está absolutamente certo.
 
Eu ouvi bem? Ele falou comigo?
 
– Sim.
 
– Quem é você? Que está fazendo aqui?
 
Não obtenho resposta, o que me irrita.
 
– Por que nunca respondeu às minhas perguntas?
 
– Calma... eu não preciso responder, pois no fundo o que você procura está dentro de si.
 
Dentro de mim? Que raio de papo é este? Será que a minha loucura já chegou ao extremo?
– Não... já começamos de maneira errada! Primeiro de tudo: pare de dizer que é louco, porque não é coisa nenhuma!
 
– Ah, claro... então, agora você vai me dizer que você é real e que isto não é um pesadelo no qual eu estou preso há 10 anos?
 
– É necessário mesmo que eu diga?
 
Chega disso! Levanto e sigo em direção àquela criatura pálida e aparentemente inocente. Observo-a por uns segundos, e, resolvido a despejar toda a minha frustração, acerto-lhe um belo tapa no rosto repleto de espinhas.
 
Qual não é a minha surpresa ao sentir a dor em minha própria face. Olho do garoto para o espelho perto dali: a marca do tapa é visível na minha bochecha, vermelha e penetrante. Que diabos está acontecendo? Se isto é mesmo um pesadelo, por que não consigo acordar? Caio aos pés do garoto, as lágrimas escorrendo de meus olhos e o peso da dor desmoronando em mim. Ele larga o caderno e me estuda com os olhos.
 
– Você não se reconhece mais?
 
O que ele quer dizer com isto? O que... espere aí. Eu... Eu sei! Não... Mas isto...
 
– ... não é impossível. Você esteve olhando para o seu passado durante um tempo incontável e só agora foi perceber isso.
 
– Por que eu continuo vivo?
 
– Vivo, você? Acho que não. Acho que está apenas... Existindo, nada mais.
 
– Não há um jeito de mudar isto?
 
– Certamente. Você sabe como.
 
Eu suspiro por um momento, hesitante.
 
– Será que eu terei força suficiente?
 
– O que você acha?
 
– Não sei... Mas, espere... Nós... Somos a mesma pessoa, não?
 
– Afirmativo.
 
– Como...
 
– Você sabe de tudo melhor do que qualquer um. Não vamos mais perder tempo... Vem comigo?
 
Seguro com firmeza a mão que me é estendida. Juntos, seguimos em direção ao hall, muito silenciosamente. Abro a porta com cuidado, deixando o frio bater em meu rosto. Sorrio pela primeira vez em anos.