Policial

Abro o jornal. Mais um dia de manchetes sensacionalistas. O copo de conhaque, erguido em forma de desafio. Mais um dia a cumprir. A farda, amarrotada dentro do armário. A esposa, ainda dorme, embalada pelos antidepressivos. Faz algum tempo que nem mesmo beijo-lhe os lábios. Aqueles mesmos beijos, que quando nos conhecemos, eu ansiava por receber, muitas vezes agarrando-a pela cintura e tirando-lhe o ar. Meu filho, dormindo no outro quarto, crescendo sem pai. Sou ausente. Ontem, aquele tapa na face daquele menor drogado, me fez recordar da minha cria, de como será quando ele crescer, quais os conflitos que eu terei provocado. Balanço a bebida dentro do copo, como se buscasse no fundo do copo, minhas ilusões perdidas. O fardo da farda, pesa mais a cada dia. Saio de casa se compromisso de volta. Talvez meus familiares nem queiram que eu volte. Sou como um daqueles vasos ruins dos ditados populares, resisto ao inferno do dia-a-dia.

O coração bate. Muitas vezes, nem sinto que ele exista, já que parece tão endurecido, que me faz puxar o gatilho. Sem que me importe com quem receberá o projétil. Nem todos de nós são assim. Ainda bem. Quando cruzei a fronteira e não mais pude ser como aqueles que eu admiro, não sei bem mencionar. Eram tantas as críticas, pois todos comentavam sobre o quanto estávamos largados, desprestigiados, sem propósito. No vestiário, algumas conversas sobre ganhos extras, com certeza ilícitos. A primeira propina invade o peito de culpa, quase a ponto de nos entregarmos a própria justiça, feito um personagem daquele autor russo que um dia um professor amigo meu, citou. Dosto alguma coisa. Não me recordo bem o nome. A culpa vai sendo trancafiada, dentro do coração de pedra, a ponto de existir apenas a mecânica do ato e usufruir das benesses, como um estado de êxtase, que embriaga e faz esquecer. Daí a necessidade de porres diários.

As lágrimas de minha esposa, quando acertei-lhe a mão na face. Deixando-a no canto do cômodo, acuada. Me tornara um bicho, com olhos de fúria que faziam meu filho abaixar a cabeça e não me fitar. Descontava toda minha frustração, arrebentando meliantes, que nas ruas, estavam era sob minha própria jurisdição. Existiam os bons policiais, que vez ou outra me ameaçavam com suas insinuações. Mas sem provas, continuei trilhando meu caminho. A arma na cabeceira da cama. Um simples soltar de fogos na vizinhança, já me fazia saltar tenso da cama, de cueca e pistola em punho. Na patrulha, o olhar sobre os pedestres, como se todos fossem alvos em potencial. Os cigarros aliviando o estresse, sendo que os de maconha, ajudavam mais a relaxar. Algumas vezes consumido em casa, sob resistência de minha esposa, que não desejava o mal exemplo para nosso garoto. Depois veio a cocaína, as prostitutas que liberava após uma chupada ou algo mais. Era o rei de um mundo podre, onde enriquecia a base de lixo.

Alvejado algumas vezes. O hospital já foi meu lar por algum tempo. As rondas feitas sob efeito do álcool, as agressões gratuitas. Em alguns momentos, penso em encerrar tudo com um tiro na cabeça, mas sou covarde ainda para isso. Por isso, provo meu conhaque, já que o whisky acabou. Logo compro mais garrafas e deixo todas secas. Abro o guarda-roupa, visto a farda rota e observo minha esposa. Sim, é linda. As pernas aparecem descobertas, vestindo uma calcinha branca, sensual e sensível. Sou responsável pela nossa tragédia familiar. O dever me chama. Mais um dia de trabalho, sem saber se ocorrerá retorno para casa. Confiro o pente de munição. A verificação de rotina se existe alguém nas proximidades. Saio em velocidade baixa, parando no sinal e aproveitando para tomar mais um trago. A pistola no banco ao lado, enquanto a mão trêmula, segura a garrafa de bebida. A garrafa escorrega e cai, na tentativa de pegá-la, derrubo, ela e a arma no chão do carro, escorregando-as para baixo do banco. Abro o vidro para respirar um pouco. Uma voz de criança, dizendo, “é um assalto”. Movimento para buscar a carteira, mas o menino, provavelmente sob efeito de crack, dispara. Minha visão embaça e o corpo cai, ensopado pelo sangue. Nesse momento, enxergo a arma e a garrafa, mas ambas se tornaram inúteis. Só peço desculpas a minha família, enquanto morro. Fecho os olhos de vez, e até esse momento, ninguém havia aparecido para me socorrer.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 02/03/2013
Código do texto: T4167608
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