SEPARAÇÃO
Haveria de escapar. Afinal não havia premeditado. Foi acidente. E como saberia que ela estaria ali? Quem saberia? Eu não sabia. Às vezes fantasiava e desejava coisa parecida, mas de verdade...não sabia. O quarto imundo, cheio de sujeiras nos cantos. Lençóis encardidos e travesseiros duros. E justo ela. Ela que não suportava sujeiras e fazia da Leda gato e sapato e a mandava varrer de novo, ensaboar de novo, passar de novo. Ela. A viciada em limpeza. Deitada nesse quarto fedido a mofo e perfume barato. Ela a chique. Puritana. E como ia à missa impecavelmente aos domingos... Todos os domingos. Irritantemente me sacolejava e me tirava do sono bom da tardezinha para ir com ela. Eu bocejavante ia por ir. Ela que mal piscava durante as homilias. Ela com as caridades doando enormes quantias durante as oferendas. Fazia questão de por a nota de cem dentro do cesto e não havia quem não reparasse. Ela fazia questão de esticar a nota e deixá-la na lateral para que todos soubessem que era rica e caridosa. E agora? A bolsa de grife famosa dentro desse quartinho de quinta parece gritar comigo. Mas que culpa? E como eu poderia saber que era ela quem estaria por aqui. O corno. Ainda não sei quem me ligou para vir nesta espelunca. "Esteja no hotel Texas da Rua 2, às seis horas, hoje. Quarto 37." Que diabo. Não reconheci a voz. "Estão te roubando. Vai lá." Que inferno! Achei que era o meu sócio fazendo negócios às escondidas, pensei na minha amante -secretária com aquelas desculpinhas esfarrapadas saindo com aquele Office boy depois do expediente. Imaginei ser o meu filho, estudante de Medicina com notas cada vez mais medíocres... Enfim... Todos. Menos ela. Uma coitada cheia de vaidades, miserável e já feia. Muito gorda, meia idade... Eu poderia ter suspeitado antes e teria chutado o traseiro com força. Nem a suportava. É. Fui burro. Não percebi as pistas, Estavam na minha cara. Aquele papo de lipoescultura ano que vem, dietas o mês inteiro... Sim. Saindo durante o dia com maquiagem até pra ir à academia... Academia... Sim !!! É de lá esse sujeito nos braços dela. Sabia que conhecia. Bonitão. Jovem. Parecia mais novo que o meu filho caçula. E o que queria essa infeliz? A sorte era tão grande! Eu não iria matá-los. Não haveria escândalos. Era uma desculpa perfeita para me ver livre dela e ainda ter o apoio dos meus filhos. Até sei o que me diriam: “Ela te traiu, papai”. Por que essa burra gritou quando me viu e se atirou daquele jeito nos braços desse retardado? Cena ridícula. Ela em cima dele. Por que ficaram tão desesperados e correram para a sacada desse apartamentozinho? Eu fiquei furioso na hora,é verdade. Mas quando abri a porta... eu não esperava. Um quadro para piadas de stand up: uma quase carola de igreja com um rapazinho com cara de “posso tudo”. Se mataram. Foi isso. Quem em sã consciência caminharia para uma sacada como essa de um quinto andar? Eu não fiz nada. Se atrapalharam nessa cortina velha. Eu vi. Ela pisou na cortina. Também... pelada na cama usando escarpam... Vermelho. E ainda segurou no idiota que só tem músculo. Força nenhuma. Geração Yakult. Os dois mortos. Tudo rápido. Foi o que vi. Na hora tive mesmo vontade de tocar com as minhas mãos, as de um marido traído, nos seus ombros flácidos e largos. Estava e estou nervoso. Não sei até agora porque não consigo largar este travesseiro nojento que aperto ao meu corpo. Fede saliva, provavelmeente daqueles dois. Espero a porta se abrir, aqui, sentado nesta cama dura, asquerosa dos amantes. Ainda não consigo levantar. Meu corpo treme inteiro. Por enquanto o show está lá embaixo. Dois corpos quebrados no concreto.