Capítulo 01. " Não é pessoal".
CAPÍTULO 1
(...) Trabalhei demais, vivi pouco e os melhores momentos foram pura ilusão. Não é fácil estar no meu lugar, e pra ter essa frieza não há alternativa, a não ser, dar a cara à tapa. Descobrir, por si só, que a morte nada mais é do que uma simples consequência de estar vivo. Uma leitura completamente diferente daquela imagem do gangster maioral cultuada por Copolla. Sério, até hoje me pergunto quanto à máfia pagou por isso? Porque, honestamente, não acredito que uma pessoa mentalmente sã, chegaria ao ponto de crer na fábula do banqueiro sem ganância!
Não vestimos apenas smokings ou desfilamos ao lado de máquinas potentes e beldades nacionais. Não somos a evolução do ser humano, e muito menos os fodões que, a tevê faz questão de expor. A verdade é que não temos compaixão, e muito menos classe. A máfia nada mais é que uma ramificação do crime organizado. Outra forma de fazer dinheiro, e por isso é indispensável. Estando em você, entre seus familiares e nas mais simples ações! Talvez numa doação, em meio a um assalto ou quem sabe até num saco de cimento. Nós estamos em tudo! Imagine um ambiente onde o dinheiro só se lava com sangue. Até a minha alma deve estar manchada. Poético, não? Só que não me arrependo de porra nenhuma. Fui criado para ser assim! Não tive infância, e ao invés de brincar de bola com as crianças da minha idade, andava no meio dos tubarões do narcotráfico, aprendendo que as pessoas são efêmeras, que vêm e vão num ritmo tão rápido, que chega a ser natural. (...)
Deixando a primeira vítima ser lavada pelos demais funcionários, voltando-se para o estado do outro meliante em potencial, por um triz não escorregou na poça de sangue que se formava ao lado da maca. As horas insones entravam em conluio com peças pregadas pelo cansaço. A cena era horrível. Ele perdia muito sangue, mas ao pensar em alguma maneira de estancá-lo, desvendando os lábios azulados do ferido, cabisbaixa teve a certeza de que enxugaria gelo. Não tinha o que fazer, as perfurações eram profundas e haviam atravessado a vítima que já chegara ao local desacordada. Tão certa como dois mais dois são quatro, infelizmente assinaria óbito em seu plantão e mesmo que tivesse toda a boa vontade e linha preta do mundo, jamais teria como salvá-lo. O sujeito chegara num estado deplorável, sujo de terra e sangue, com cinco projéteis espalhados pelo corpo, o que não tardou para confirmar suas expectativas.
Largando o lençol imundo sobre o rosto do jovem que morrera sob a sua responsabilidade, acostumada com as perdas, Patrícia aproxima seus dedos em direção as pálpebras do homem que morrera em seus braços, quando irrompendo as ondas inebriantes de Morpheus, escuta a voz de Andressa:
– Acorda amiga. Estamos quase chegando.
Emergência lotada. Filas enormes e insatisfação popular. Vida de Médico é dura. Pior, no caso de Patrícia Schiavi que atuando como cirurgiã emergencial há onze anos no Hospital Geral de Bonsucesso, nunca soube o que é descanso. Trabalhava sobre o fio da navalha, sem equipamentos e instalações adequadas. Não tinha proteção, salário e muito menos uma autonomia digna! A teoria da faculdade era completamente oposta o exercício da profissão, ainda mais quando nada podia ser feito, enquanto vidas e sonhos se perdiam. Trabalhadores ceifados aos montes em face à corrupção dos figurões públicos, que no alto de seus palacetes blindados, desviavam quase toda a verba da saúde para financiar viagens a Paris com grandes empresários. Era nessa hora que se tornava óbvio. O povo brasileiro, também conhecido como “queridos eleitores”, fora convertido a um aglomerado de pessoas pobres e sofridas, que roubadas diariamente através de tributos exorbitantes, na hora que necessitavam do Estado não tinha direito algum pelo que pagavam.
As condições de trabalho que enfrentava diariamente eram muito erradas, de enlouquecer na verdade. Porém, além da médica exemplar, também existia uma mãe dedicada, que ao soar do alarme seria liberta, uma vez que sozinha não resolveria os problemas do mundo, e caso caísse em depressão, para piorar, sequer cuidaria da própria família.
Deixando os corredores hospitalares para trás, voltando a realidade de uma simples caronista, com as maças do rosto visivelmente coradas Patrícia volta seus olhos azulados em direção a motorista e responde:
- Perdão minha amiga, mas esse plantão foi pesado.
- Estou sabendo. Chegaram três garotos ás quatro da manhã, não foi? – Perguntou Andressa, que de olhos atentos na pista, fazia de tudo para não se deixar abater depois de outra extenuante jornada de trabalho.
- Dois moribundos e um defunto, para ser mais exata. Outra cortesia da PM.
- Chance de vida?
- Poucas. A cena foi horrível e ainda não consigo tirá-la da minha cabeça. Mesmo há tantos anos no hospital, ainda não consigo ver os feridos serem retirados como sacos de lixo no fundo da viatura.
- Francamente Patrícia, eu não sei como você consegue. Lá na pediatria, quando aparece alguma criança vítima de violência a primeira coisa que eu faço é acionar a polícia, mas no seu caso não tem como. Vai recorrer a quem?
- Não sei Andressa. Para falar a verdade, o que mais me incomoda é a cena em si. Mesmo sendo de uma família conservadora, fui acostumada com a realidade de um mundo semeado por pólvora. Da onde eu vim, se um sujeito é homem para matar, também tem que ser homem o suficiente para morrer. Algo completamente diferente dos gritos e pedidos de socorro que ouvi hoje. Desse jeito é fácil ser ruim... Mas julgá-los não me diz respeito, e mesmo que eu odeie esse tipo de gente, devo tratá-los como qualquer outro cidadão. Afinal, sou paga para salvar vidas, assim como respeitar o meu código de ética e o CRM*. – Desabafa Patrícia, enquanto afrouxando o cinto de segurança se acomoda devidamente.
Inclinando o rosto, a simpática morena de sorriso esbranquiçado encara a amiga sem o mínimo de pudor. Neste momento, considerando os anos de amizade, achou graça por jamais sentir-se atraída por ela, mesmo tentado várias experiência não tão convencionais com suas demais amigas e maridos, mudando completamente de assunto afirma:
– Não se preocupe. Acho que se a gente acelerar mais um pouco, vamos conseguir chegar a tempo de levar seu filho ao colégio.
Devidamente sentada, retrucando com calma, à medida que a amiga atravessava a pista em alta velocidade, Patrícia tomba a cabeça sobre o estofado e afirma:
– Sem pressa Andressa. Ele está na casa madrinha. Hoje a minha única preocupação é chegar inteira. O dia foi punk, e, além disso, ainda estou com a cabeça estourando.
Patrícia, respondia sem pensar direito. Estava a anos luz de distância dali, e perdida em sua meditação, deu-se conta do que ainda lhe esperava pela frente, quando desabafou:
– Falando em pai. O meu está lá em casa, junto com os meus irmãos e a minha mãe. Uma reunião e tanto.
– Aniversário de alguém ou só um encontro?
– Primeira opção. Mas não é de ninguém da família. Antes de ontem, numa idéia maravilhosa de tentar me desencalhar a força, o cabeça dura do meu pai chamou a família inteira para a festa que, está sendo chamada de o evento do ano. – Disse Patrícia, mostrando não estar interessada em compromissos sociais.
– A festa no antigo clube Itanhangá? Por acaso está falando do aniversário de Salvatore Lavezzo? – Andressa questionou estupefata.
– Essa mesmo, amiga. Mas para ser honesta, não estou com a mínima vontade de sair para comprar vestido e testar maquiagem. Só quero a minha cama e ponto final.
– Larga a mão de ser preguiçosa. Há quantos anos você não se dá ao luxo de comprar uma roupa legal? Durma um pouco que, mais tarde passarei na sua casa para levá-la ao shopping.
– Obrigado amiga, mas não. Realmente estou acabada.
– Por favor, deixe de ser desanimada. Você é solteira, bonita e além do mais é uma das pessoas mais inteligente que já vi, por que vai ficar se privando de ser feliz? Vai que aparece um empresário bonitão? Vamos lá, agite essa poeira e deixe-me ajudá-la. Essa noite promete, e o mínimo que você tem de fazer é aproveitá-la por mim, já que depois de casada não sei mais o que é vida social.
– Deixa de ser reclamona Andressa. Você tem a vida que a maioria de nós pediu a Deus. Seus filhos são lindos e seu marido é uma pessoa excepcional – Retrucou Patrícia, ao censurar a ingratidão da amiga.
– Você não sabe o que está falando. Depois que eu saio da pediatria, ainda tenho que fazer o papel de boa esposa antes de dormir. Vida de casada não é esse encanto todo. E para piorar, o pouco tempo que me resta só dá para ir ao shopping. No máximo, aos fins de semana quando tenho forças, depois de muita insistência ainda vou fazer um passeio no Parque Laje ou na Floresta da Tijuca.
Ouvindo atentamente as reclamações da motorista, Patrícia contém o sorriso até que deixando a sisudez de lado, questiona em tom mais intimista:
– Quando tem forças? Está falando sobre aquele problema que todas queriam ter?
– Vai começar? Você só diz isso porque não tem marido. Ele parece um robô, e tem horas que me pergunto se ele faz isso por instinto ou vontade. – Andressa responde, enquanto olhava fixamente para a pista.
– Então ta, vou fingir que acredito. Por acaso vai dizer que você não gosta? – Patrícia questiona com um sorriso leviano.
Levando o dedo indicador em direção até a boca num gesto ironicamente sensual, encarnando os comentários, mais à vontade Andressa responde:
– Gostar, eu gosto. Afinal, quem não gosta? Na hora aproveito com o meu coelhinho, mas o problema é o resto do dia. Não fico com vontade de levantar por nada.
– Coelhinho? Ele é precoce assim? – Patrícia pergunta de maneira despudorada.
– Antes fosse, sua invejosa! Ele é rápido mesmo. – Responde mais envergonhada.
Dos portões do Hospital Geral de Bonsucesso até a residência, no bairro de Santa Tereza, o trajeto demorava cerca de vinte cinco minutos ou no máximo trinta, caso pegasse a Linha Vermelha. Em breve daria um beijo carinhoso no pai e aí sim se jogaria sobre os vários travesseiros que lhe esperavam sobre a cama. Não via à hora de chegar e descansar, enquanto ao seu lado, demonstrado estar bem melhor fisicamente, sua amiga dirigia com cautela.
Segura de si como raras exceções, Andressa Vecchio também era médica e mãe de três filhos, entretanto oriunda de berço esplêndido, e com um casamento de sucesso há vários anos, tinha outras fontes de renda, como um consultório pediátrico na zona sul da cidade. Amigas desde o tempo de faculdade, recostando a cabeça sobre o estofado, Patrícia fita a parceira e recorda do corpinho magro e sem atrativos, que hoje repleto de curvas, expunha a beleza que somente o dinheiro poderia comprar. Viagens incríveis, romances e tudo mais que uma família de nome poderia bancar. Porém, focada em seu objetivo de salvar vidas, sempre fora a aluna exemplar, e formou-se especialista um ano antes, recebendo honrarias máximas. Divertida, bonita e inteligente, não era à toa que o marido não a deixava em paz. Além de sexy, era uma mulher respeitável da mais fina grife. Um prato cheio para qualquer homem que se preze, enquanto ela, fiel escudeira e tão bonita quanto, sentindo uma pontada de inveja, lamentava a ausência de tempo para passar com o filho.
Cada uma seguiu seu caminho, e lamentando as péssimas escolhas que fizera, concebeu que talvez tivesse uma vida melhor caso escutasse os conselhos do pai. A despeito do jeito arcaico e super protetor, no quesito reconhecer vagabundo, o velho era o melhor. Um típico italiano do sul que sem papas na língua não tardou a delatar o farsante, que atualmente desaparecido a deixou como a única provedora da casa desde o nascimento de seu filho.
Desconhecendo os reais motivos que levaram seu marido a sumir desta maneira, Patrícia fez das tripas coração e demonstrando o típico orgulho italiano, em momento algum aceitou dinheiro da família para se sustentar. De menina meiga e frágil, ao tomar as primeiras pancadas tornou-se uma mulher forte. Não mais precisava de homens e quando sentia desejo, era fácil resolvê-lo. Existiam dedos, consolos e até rapazes maravilhosos, que por quantias módicas lhe resolveriam esse problema, sem querer casar no dia seguinte. Depois de tanto sofrer, orgulhosa viu-se independente. Era avessa à cultura machista e com o apoio das pessoas certas venceu na vida, aprendendo a ser destemida, dizendo tudo o que sentia sem levar um único desaforo para casa.
Exausta, ao sentir o cessar do veículo, poupando cerimônias resolveu ir embora deixando para trás a amiga, que deu duas buzinadas antes de manobrar o carro e sumir pelo horizonte. Ainda na calçada, em frente ao portão da casa amarelada, Patrícia procurou as chaves quando se deu conta que havia as deixado no Hospital. Desta forma, torcendo para que seu pai ainda estivesse no local, tocou a campainha e depois o interfone. Nenhuma resposta. Insistente, tocou novamente, porém ninguém veio atendê-la. Neste momento, extremamente irritada com vacilo que dera aos esquecer as chaves de casa, revelando traços de sua brutalidade italiana, Patrícia dá dois tapas violentos na porta, quando para a sua surpresa descobre que desde a sua chegada a mesma fora esquecida aberta.
A rua escura como a noite, sem um sinal de vida pelas calçadas fez-lhe sentir um frio gélido subindo a espinha. Um pouco impressionada por ser a única pedestre no local, desconfiada buscou o celular e ligou para a amiga, que provavelmente ocupada ao volante, não pôde atendê-la. Não sabia como agir, por isso pensou duas vezes antes de entrar. Acima, espreitando a todos com seus olhos vítreos, a câmera de segurança ainda funcionava. Talvez não fosse nada demais, somente um descuido de seu pai. Morava numa cidade violenta, mas em todos esses anos não sofrera uma tentativa de assalto sequer. O bairro era bom e a segurança privada dava cabo de qualquer intruso que tentasse fazer graça. Era corajosa, porém consciente. Sabia que não teria chance na luta corpo a corpo contra um homem, pior ainda se o invasor estivesse armado. Dessa forma, buscando saber o que havia acontecido, com os olhos fixos na fechadura descobriu que seu carro, assim como o blindado, que há poucos meses fora comprado por seu pai, ainda estavam na garagem. A princípio não era nada fora do normal, talvez uma má impressão. Assim, ao empurrar a porta viu o trinco quebrado, provavelmente por uma chave de fenda grande ou um pé de cabra. Voltando a preocupar-se, vasculhando a bolsa, Patrícia pegue o spray de pimenta e o esconde por trás do punho.
Todos os indícios apontavam para uma invasão a seu domicílio, e sem dar sorte ao azar, superando o tremular das mãos antes tão sólidas, finalmente ligou para a polícia. Aguardou um minuto. Dados informados, e em breve a patrulha chegaria. Nessa situação, caso viesse de uma família comum agiria como a cartilha. O correto seria aguardar pelos homens de farda, porém por tratar-se de uma mulher forte e corajosa, tão estúpida quanto a maioria dos heróis, Patrícia discretamente invade os jardins.
A casa parecia intacta e tirando o sinal de arrombamento, não havia mais nada fora do normal. Com calma, escondendo-se entre os arbustos correu até a churrasqueira e por um ponto cego coberto por telhas, na beirada da piscina, alcançou a entrada da casa, que também estava entreaberta. Cinco minutos haviam passado demoradamente, entretanto nem um sinal da polícia ou dos criminosos pelas redondezas. Ressabiada, Patrícia encostou-se à porta atrás de resposta, quando se deteve ao ouvir passos. Talvez fosse o criminoso à sua espera ou quem sabe algum sobrevivente procurando por ajuda. Presa em dilemas e a menos de um metro do possível invasor, apesar de relutante, abriu a porta atrás da identidade daquele que caminhava pela casa, mas numa espiada rápida reparou no imenso vazio da sala principal.
Para o seu espanto não havia ninguém. As cortinas blecaute estavam fechadas e a escuridão lhe impedia de observar os demais cômodos. De repente o celular tocou, e fazendo estremecer até o pêlo mais íntimo do seu corpo, sem saber como agir desligou o aparelho. Em poucos minutos a polícia estaria chegando, talvez desse tempo de esperá-los, mas onde estavam seus parentes?
De repente uma bela melodia interrompeu o silêncio. Logo a reconheceu, e por um instante, sentindo enorme alívio, viu que se tratava da música favorita de seu pai. A tensão ainda era grande, e mesmo que o alívio momentâneo a encorajasse, preocupada com a ausência de respostas, num ato impensado resolveu chamá-lo. Trinta eternos segundos se passaram, e nenhuma resposta. Desse modo, sozinha ao passo que escutava a inconfundível Sway, repensou a atitude passada e logo sentiu muito medo no coração. Talvez seu pai estivesse morto, e aquilo fosse tão somente uma brincadeira de mau gosto. Conhecia muito bem as histórias por trás de seu sobrenome, e por isso não poderia dar-se ao luxo da descrença, ainda mais quando se via à mercê do desconhecido.
Seus familiares com certeza não estavam presentes, e muito menos seu pai, afinal já não tinha mais idade ou humor para brincar dessa maneira. Por isso, entendo que aquele jogo não passava de apenas um tempero, deu três passos para trás quando de repente a porta se fechou. Desesperada, em vez de paralisar diante a arapuca, ao ouvir outra seqüência de passos, deu tudo de si numa carreira ligeira, no entanto por obra do destino, seus dois pés deslizam sobre o piso.
A queda havia sido feia, e estirada sobre o piso de ardósia, em outra tentativa de fugir, movida pelo desespero escorregou ao tentar se levantar. Sem forças, enlambuzada com o mesmo líquido que a fizera escorregar, Patrícia se debate dezenas de vezes numa crise de raiva quando detida pelo horror, ao sentir o cheiro ferroso e inconfundível, quase vomitou ao perceber que se encontrava em meio a uma poça sangue. Enojada com aquele suco escuro que ensopava suas roupas, apesar da incessante vontade em descobrir de quem o seria, resolveu não estender-se, afinal nada poderia fazer além de se esconder e aguardar. Mesmo que não houvesse sinais claros quanto à presença dos invasores, a pessoa que ferida deixara tal rastro, certamente não estava mais viva. Havia muito sangue, e apesar dois instintos médicos gritarem em sua cabeça, a razão da sobrevivência lhe mostrou que seria mais sensato esperar, afinal a polícia em breve daria chegaria.
Dois minutos passaram, e o tempo tardava a passar. Ansiosa, após alguns minutos de intensa prontidão decidiu buscar qualquer outra alternativa. Deveria ser ágil, e aproveitando-se do mesmo breu que lhe cegava, pouco a pouco tratou de aguçar seus demais sentidos. O odor do ambiente deixara o floral para tornar-se completamente azedume, e o piso antes corrido, estava pegajoso. Nada era mais como antes, e perdida em meio aquele cenário que, horas antes chamara de lar, deteve-se novamente, ao escutar um misterioso solado de madeira batendo contra o piso. Apavorada, ligou para a polícia e para sua sorte logo viera à voz da atendente. Pensou no que dizer, porém ao conseguir apenas balbuciar palavras incompreensíveis, sem paciência acabou deixando o aparelho escapulir de suas mãos. Jamais encontraria o aparelho, e mesmo medo que tomava posse de seus controles, numa avalanche de energia a forçou a disparar antes de reaver o aparelho. De repente vários passos foram ouvidos dos outros quartos. Frágil, indefesa e em desvantagem numérica, aproveitando-se de um instante de iluminação dado pelo vento que, partindo da porta de entrada delicadamente movia a cortina, estarrecida encontrou seu pai.
Quando pensara em partir, há três metros de distância, com um ferimento enorme de aproximadamente quinze centímetros de largura, jazia seu estimado pai. Na parede e sobre alguns móveis que compunham a mobília da cozinha, facilmente encontravam-se respingos de sangue. A cena era horrível e não aguentando tamanha violência, agindo de maneira contraditória aquela que empregava no hospital, diante a morte de um ente querido, desabou em lágrimas. Sem energias ou vontade para prosseguir, completamente atordoada pelo medo, Patrícia engatinhava com lerdeza, ao ponto que passando pelas demais silhuetas, sem dúvida confirmou que as mesmas pertenciam a sua mãe e irmãos. Neste instante, os invasores finalmente dão as caras e partem em direção a sala.
Cercada pelos homens que, de tão acostumados com a morte não buscavam ocultar suas identidades, encarando-os nos olhos, em momento algum Patrícia implorou pela vida. A essa altura, o cano da escopeta calibre doze, voltado em direção ao seu rosto nada lhe dizia. Não temia a morte, e muito menos daria o prazer da súplica aqueles patifes. Seus pais e irmãos foram mortos, porém havia vencido. Seu filho ainda respirava e algum dia iria vingá-la, por isso, invés das lágrimas da última hora, apenas sorriu ao ouvir a voz de um velho homem, que anos atrás a batizara:
- Perdão minha menina. Não é pessoal.
Estacionando seu veículo de qualquer maneira ao lado de fora da residência, desconhecendo o que ocorria com sua amiga, Andressa encara as chamadas recebidas e receosas descobre o portão entreaberto. Corajosa desde menina, sentindo que havia algo de errado hesitou duas vezes, porém ao avistar uma viatura da polícia se aproximando, intuindo o pior e decidiu dar um passo para dentro. Sentindo-se protegida a despeito da polícia ainda nem ter aparecido no portão, antecipando o atendimento de qualquer emergência, a destemida médica avança pelos jardins até que tem seus movimentos cortados por uma explosão. Estremecida pelo monstruoso estrondo que invadira seus tímpanos, aterrorizada pela cena que acabara de presenciar, sem reação assiste um jato de sangue espalhar-se pelo tapete da entrada.
Paralisada pela explosão, jurou ter escutado um gemido similar a voz de sua amiga. Assim, perdida em milhares de maus pensamentos, demonstrando o mais puro instinto de sobrevivência, Andressa optou por não conhecer o fim daquela história, no entanto antes mesmo de pensar em correr é covardemente alvejada. Prontamente lançada ao jardim pelo impacto que a atingira na lombar, sentindo os mesmos projéteis que lhe invadiram também atravessar seu peito, antes de perder a razão Andressa assiste a chegada do misterioso ancião que, sem pressa era acompanhado por mais três homens.
Encarando a escopeta repousar sobre o ombro de um distinto senhor, após fingir-se de morta, Andressa supera as dores e discretamente tenta afastar-se. O caminho era longo, porém aproveitando da desatenção de seus agressores, exercia um esforço descomunal ao fincar as mãos solo adentro, para assim compensar a dormência das pernas. Já havia percorrido dois metros, e quase alcançando o interior da casa, mesmo que não quisesse, descobriu o que restara de sua amiga. Por um segundo pensou que conseguiria, porém findando qualquer resquício de esperança, sem maiores cerimônias é alvejada por mais três disparos, desta vez dados por um dos capangas, que voltando apenas para executá-la, parecia fazer questão de expor o quão ínfimo tornou-se o valor a vida. Afogada no próprio sangue, à medida que se lembrava de seu marido e filhos se despedia do mundo sem glória alguma, até que antes de nublar os olhos, descrente assistiu o desaparecer de seu assassino, que impune cumprimentou um dos soldados da polícia militar, antes de fugir a pé.