Despedida Para Um Cão
Eu lembro bem quando a vizinha de baixo contou. Eliana, a veterinária. Disse que eles tinham pedido que ela fosse ver o bicho, e já naquele tempo, segundo ela dizia, ele já era um cão velho. Percebi certo desprezo mesmo por trás do seu ar profissional quando ela confessou que achou o bicho um tanto maltratado. Tinha um problema dermatológico daqueles que faz com que o pelo caísse, o que o deixava com uma péssima aparência. E já tinha pelo menos uns quatro anos que Eliana tinha se mudado. Naquele fim-de-semana prolongado, eu preso em casa por conta de um prazo inadiável a cumprir, martelando incessantemente no teclado do computador o texto da tese que seria meu passaporte para fora de toda aquela miséria humana.
Não que eu reclamasse da minha condição, não que morasse em algum tipo de favela, pelo contrário. Era um bairro de classe média-alta, e cuja taxa de impostos municipais era compatível até com alguns bairros até mais bem frequentados... Sabia afinal, que tinha uma vida melhor que a de muita gente. Tinha consciência de que na pirâmide da sociedade, meu degrau era no mínimo do meio pra cima. Não que estivesse muito pra cima do meio, mas me confortava um pouco saber que ao menos abaixo não estava. Mas me ressentia profundamente da miséria mais sórdida que eu conseguia identificar ali. Uma miséria mental extrema. Uma miséria completa, que fazia com que a família que possuía aquele cachorro me deixasse tão decepcionado por fazer parte da mesma espécie que eles. Moravam no apartamento em frente ao meu. O pai, a mãe, um casal de filhos jovens adultos, o filho da moça, o cachorro, um gato. Todos apinhados em um apartamento do qual escapava o cheiro dos animais quando se abria a porta. Só não saberia dizer se era o cheiro dos de quatro ou dos de duas patas.
O pai, Fernandes. Um cinquentão alto, animado, falante, fanfarrão. Aposentado, ganhava uma pensão com a qual sustentava a casa. Circulava pela vizinhança com o neto no colo, exibindo-o como se fosse um troféu. Algo de estranho me sugeria a idolatria que sentia pelo neto, talvez uma carência em outra área, mas não era possível identificar sem mais informações. Pelo menos não o suficiente para que eu procurasse mais intimidade com eles. Já a mãe, Dona Nelzita, era uma senhora cinquentona também, bastante derrubada, mas que conservava traços de quem foi muito bonita no passado. Era uma mulher alta, cujo porte já não se sustentava, mas que nos seus áureos tempos provavelmente pareceria majestosa ao passar... Ainda mais se estivesse em cima de um salto alto. Hoje, parecia contente com seu papel de dona-de-casa, mas seu sorriso um tanto nervoso traía que haveria mais ali por baixo daquela aparente calma de senhora católica.
A filha, Sheilinha. Um típico caso de filha que infelizmente puxou mais ao pai que a mãe. Tinha todas as feições faciais do pai, o que não a tornava imediatamente feia, mas com alguns traços inconvenientemente masculinos. Um nariz meio bruto demais, o tamanho também contribuía para sua imagem de bruta. Num vislumbre de uma foto que vi certa vez num dos porta-retratos da sala, percebi que em sua adolescência tinha sido mais delicada, talvez sugerindo algo que resgatasse um porte e beleza que a mãe tivesse tido em seus áureos tempos. Mas a adolescência chegou ao fim, e com a gravidez de Iago, a graça se foi, e ao que parecia com rapidez e sem vontade de voltar. Poucas vezes vi uma mulher embarangar tão rápido quanto Sheilinha. Foi daquelas moças que quando estão grávidas, ostentam uma eterna expressão de “e agora” estampada no rosto. Um misto de uma incredulidade idiota, e certa desesperança vaga. Apenas ficou patente, e esse fato é digno de destaque, que após o nascimento do bebê, essa expressão não a abandonou mais. E o que era uma bela promessa de adolescência, se tornou uma mulher feia, mal cuidada e patética aos vinte anos de idade.
Paulo Sérgio, o filho. Pouco a se dizer. Uma pilha de estereótipos. Micareteiro, entusiasta do Jiu-jitsu, encrenqueiro, vazio, egocêntrico, amante do status pelo status, com dezenove anos já tinha dois processos por agressão pesando sobre suas costas. O último movido por uma ex-namorada. Tem um advogado amigo do pai habilmente manobrando os dois processos para uma conclusão infrutífera para os reclamantes, diga-se de passagem. Divide o tempo entre a academia, a faculdade de educação física e a turma de amigos, todos incrivelmente parecidos entre si.
E temos o cachorro. O maldito cachorro que chora, 24 horas por dia como um filhote sem mãe, todas as vezes que a família viaja. Nunca consegui ver a criatura, não sei se está mais doente ou menos do que quando minha ex-vizinha o examinou, mas sei apenas que seus ganidos infernais ecoam pelo prédio. Reclamações, sei que já fizeram, inúmeras provavelmente. Mas Fernandes tem aquela mesma graça que o político brasileiro tem ao explicar acusações. Sem contar que sua presença, seus contatos, suas amizades enfim, todo seu cenário, o tornam alguém um tanto intimidador. Correm pelos corredores histórias de processos movidos, de confusões e rolos os mais diversos dos quais ele escapou imaculado. Contam que ele agrediu certa vez um ex-síndico, um senhor de quase 80 anos de idade. E que mesmo tendo testemunhas, a família do velho não conseguiu levar o caso a bom termo diante da justiça. Conhecendo o perfil, percebi que reclamar não era a forma mais eficaz de enfrentar aquele problema.
Lembro agora com clareza do dia em que formulei o veneno no laboratório. Um simples tablete, menor que uma barra de chocolate pequena, que após solidificado , reduzi ao formato de grãos pequenos, como os de açúcar cristal, e coloquei em um frasco plástico comum. A sensação de extrema calma. Tranquilidade, mesmo. A praticidade de usar substâncias muito comuns, mas que apenas num país de primeiro mundo seriam detectadas em autópsia. E isso apenas em caso de um atendimento rápido. Coisa que aqui, convenhamos não é comum. Lembro bem daquele dia. Quase dois meses já. O frasco me observa, pousado na pequena prateleira perto do computador, ao lado de alguns livros. Eu cedo a tentação de falar com um objeto inanimado, mas mentalmente eu me comunico com o frasco... Minha mente diz, não sem um sorriso aparecer em meu rosto: “Não demora muito agora, companheiro. Está breve”.
Passa todo o feriado, uma tortura incessante. Eu digitando minha tese, minha mente dividida em duas partes. A que trabalha, raciocina, alinhava e coloca todos os textos finais no arquivo final, e a outra, que se resume em um ódio cego e primitivo àqueles ganidos sofridos e amaldiçoados. Durante todo o tempo o cão não desiste. Intervalos de minutos, e volta ele para uma sessão de ganidos agudos, exasperantes. Em certos momentos ele para de repente, só para alimentar minha esperança de que aquela agonia vai ter um fim, apenas para alguns momentos depois, recomeçar mais forte, mais agudo. Às vezes ele solta um ganido fino e excepcionalmente mais alto, que reverbera por todo o vão interior do prédio. Poucas pessoas, a maioria das famílias viajando, ou fora de casa. Em alguns momentos me parece que só há eu e ele. Apenas essas duas almas atormentadas habitando esse prédio que caminha a passos rápidos para se tornar um decrépito.
Tomo a decisão ainda no feriado. No supermercado, compro uma bandeja de quitutes na padaria, os que mais facilmente possam passar por algo feito em casa. Chego em casa, calmamente coloco três grãos do veneno em cada um dos doces. Não tenho pressa, trabalho de forma prazerosa, e me sinto contente em ver que a cirurgia de colocação dos grãos não deixou nenhuma marca nos doces. Sinto certo prazer, o máximo que os incessantes ganidos me permitem. Olho com certa ansiedade as malas já arrumadas perto da porta. Na próxima semana, não estarei mais nesse país. Como tudo indica, com a minha tese pronta, terei apenas como preocupação a procura por um apartamento definitivo para morar por lá, para não ficar usando o quarto cedido gentilmente pelo Professor Schulmann no dormitório da Universidade. Até mesmo isso já posso considerar que está em andamento, pois alguns colegas já estão avaliando alguns lugares. Devo ver algumas propostas assim que chegar lá. É engraçado pensar que ninguém aqui sabe o que eu faço pra viver. É engraçado pensar que ninguém aqui sabe meu sobrenome, apenas meu primeiro nome. E isso mesmo já morando aqui há sete anos. Acho que hoje posso considerar o ensinamento mas valioso que meu pai me deu, aquela história de não dar nunca confiança a vizinhos. A não ficar de “bate-papo de portão”, como dizia ele. Realmente. Tem lá sua utilidade. Amanhã a família está de volta. Mas ainda tenho que lutar essa noite contra o incômodo dos ganidos incessantes, em face à minha péssima reação orgânica a remédios para dormir. Para não pensar nisso, checo novamente as passagens, vejo se está tudo em ordem pela milésima vez. Sentiria um prazer quase total, não fossem os amaldiçoados ganidos , em ver que está, de fato, tudo em ordem.
No dia seguinte, a família chega. O maldito cachorro já não faz mais barulho. Por um milagre, o remédio para dormir (apenas meio comprimido) que tomei não me fez passar mal. Acordo com uma leveza e disposição que há muito não sentia. A tese já foi enviada, seu recebimento já foi confirmado, e nesse momento já está sendo impressa por lá. Estará à minha espera, preto no branco, quando eu chegar ao campus da universidade. O táxi que vai me levar ao aeroporto já foi agendado. Pedi um carro grande para não ter muito trabalho com o tamanho considerável das malas. Ainda tenho tempo. Bato à porta deles. Sorte, muita sorte. Todos em casa. Digo que estou de saída, mas que passei o feriado na casa dos meus pais, e que minha mãe mandou quitutes. Que já comi demais e que gostaria que eles provassem. Vejo um brilho de gula no olhar de todos, glutões. Servem-se, o pai, o neto, o filho brutamontes, a mãe e a filha vêm à sala e comem também. É estranho ver o efeito assim, ao vivo, em pessoas. Os olhos ficam embaçados, o cérebro parece desligar. Desmaiam, todos caem, quase ao mesmo tempo. Procurei me preparar para alguma resistência, imaginei que a ação pudesse ser impedida momentaneamente por algum processo químico cerebral, mas não. A substância agiu com extrema velocidade, mesmo em seres humanos. Recolhi os restos do doce, coloquei em um saco com cuidado. Verifiquei se havia alguma migalha. Enquanto fazia a pequena limpeza, eis que aparece na sala o velho cachorro. Já não andava muito bem, tinha um passo um tanto quanto cambaleante. O pêlo, apesar de nem de longe apresentar a fartura que já teve um dia, ao menos não era o caso extremo de “peladeira” que minha vizinha veterinária tinha descrito anos atrás. Um olhar um pouco mais atento me fez perceber que o bicho era cego de um olho. Seu cheiro impregnava a casa, mas ele olhou para mim, e sacudiu um pouco o rabo. Senti subitamente um bem-estar. Naquele momento em que meus olhos encontraram como o seu olho bom, eu o perdoei. Levanto-me rapidamente, certificando que o saco estava bem fechado e que não tinha ficado uma ou outra migalha, enquanto vi que ele cheirava a perna de um deles. Saí do apartamento, fechei a porta com cuidado, outro saco plástico na mão, à guisa de luva.
Mais tarde no avião, recebi um email da companhia de mudanças confirmando que tinham terminado de empacotar e retirado os pertences restantes no apartamento. O gerente disse que tinha sido um trabalho fácil, era pouca coisa como eu havia dito, e acreditava poder despachar ainda naquele mesmo dia. Respondi ao email agradecendo a eficiência, com o comprovante de pagamento anexado, e no momento que o enviava, me peguei desejando sorte ao cachorro velho e cego e a quem coubesse tomar conta dele em seu restinho de vida.