UM PÉ LÁ, OUTRO CÁ
Trinta e cinco anos passaram, desde aquele dia em que João fez compulsoriamente a primeira viagem ao encontro do desconhecido. Para que não esqueça, a lembrança, embora sem cores, continua indelével, e se renova a espaços mais ou menos regulares.
Foi assim: ele voltava da faculdade a pé, como via de regra fazia, já que morava a dois quilômetros do campus. Caminhava tranquilo, imerso em devaneios, quando, num átimo, sua mente tropeçou em alguma coisa perdida lá no fundo do inconsciente e caiu num vácuo, para onde foi tragado completamente e perdeu a faculdade da percepção.
Por uma questão absoluta de ignorância ou de pobreza vocabular, explicou, não consegue nomear claramente o fenômeno, de forma que a definição do “lugar”, que optou por chamar de “o outro mundo”, certamente ficará prejudicada. No entanto continua com a narrativa e com algum esforço afirma tratar-se de um mundo amorfo, sem cores, sem vida, intangível, absolutamente sem o menor significado. Nem medo sentiu, não sentiu nada, nesse interregno em que por lá vagou desnorteado, porque as emoções deixaram de ser processadas.
Uma certeza, porém, meio inconsciente, mas certeza, não o abandonou: estava caminhando, embora perdido, incapaz de se reconhecer, mas indo para a frente.
Da mesma forma em que atravessara o portal, de repente estava de volta, caminhando para casa e suando, em razão do forte calor de verão. Calculou o tempo imerso na obscuridade entre três e cinco minutos; o suficiente, todavia, para marcar profundamente sua vida.
Em casa, nada contou aos familiares, mas pensou seriamente em procurar um neurologista; afinal, o que lhe acontecera poderia ser coisa grave.
Durante alguns dias pensou na consulta médica, mas foi adiando, mesmo que o fenômeno lhe estivesse perturbando os sentidos. Como as coisas pareciam ter voltado ao normal, esqueceu completamente do médico.
Tudo estava bem e João não queria nem pensar no ocorrido. As sombras, no entanto, rondavam-lhe os passos e um dia, exatamente como acontecera na vez anterior, ele caminhava para casa, percorrendo o mesmo trajeto, quando, num piscar de olhos, não sabia onde estava. Olhava para todos os lados e não reconhecida nada. Jamais estivera naquele lugar. A consciência não o abandonara, como na primeira vez, mas a angústia e o medo tomaram conta e ele não sabia como ir para casa. Aterrorizou-se completamente com a possibilidade de voltar a ser arrebatado pelo buraco negro, de onde jamais voltasse à realidade.
Embora perdido e sem saber para onde ia, continuou caminhando. Estava consciente e rezou, ele que nem religião tinha. Então lembrou-se de pedir ajuda para reencontrar sua rua e, assim, tão repentinamente como se perdera, estava de volta.
Ultimamente, o fenômeno tem se repetido com frequência, sempre reproduzindo as mesmas características. Em algumas delas, volta a si espontaneamente, depois de alguns segundos; em outras, carece de ajuda. Basta falar com alguém, ou consigo mesmo, em voz alta, que tudo volta ao normal. Contudo está amedrontado. Acredita na aproximação assustadora do dia em que se perderá para sempre no mundo da inconsciência e se tornará um morto-vivo.
Mas João não se deixa abater , não obstante o medo e as dificuldades, segue, numa corrida incansável e permanente, atrás de seus sonhos. Não se entregará.