MORRER COM ELA É MELHOR QUE VIVER SEM ELA

Até parece que eu estava anunciando a calamidade. Um infortúnio abrasava meu coração e o ar se fazia tormentoso com aquele anseio angustiado. Eu me sentia cansado e desanimado. Não há como descrever pormenorizadamente tais sensações, pois antes tudo se fazia na mais absoluta paz, sem inquietação alguma. Meu ser vivia mergulhado num repouso absoluto de corpo e espírito. Tudo era folga e conforto na ausência total de qualquer preocupação. Mas a consternação daquela tarde amargurada me intrigava... Eu tentei me desvencilhar daquelas sensações terríveis e fatigantes ao lembrar-me de quando fui idealizado e urdido com grande fecundidade criativa pelo Soberano e Altíssimo Senhor da eternidade, o Criador absoluto cuja existência não tem princípio nem fim.

Recordei minha primeira e prolongada respiração acompanhada de um sobressalto súbito e violento. De repente eu existi... A situação era de desordem e surpresa; uma agitação por demais maravilhosa encerrava grandeza e perfeição... Tudo era prodigioso, admirável e surpreendente. Aquele foi meu primeiro momento. Enquanto me adaptava à luz com minha visão desfocada com tamanha claridade a me envolver, eu me definia, num instante, como vivo e consciente. A primeira coisa que eu vi foi a indescritível luz proveniente de meu Criador; a segunda, após a visão se estabilizar, foi o Ser mais Belo e Formoso, mais Radiante, mais Célebre e Glorioso, enroupado até os pés de um deslumbrante indumento comprido e abrangido pelo tórax com um excessivamente bem elaborado cinto de ouro; Sua Cabeça e Cabelos tão brancos como a lã mais macia, espessa e alva, eram deslumbrantes; Seus Olhos como a labareda do fulgor mais intenso saltavam no meu íntimo trazendo satisfação e calma. Alinhei a espinha lentamente mantendo os braços em frente ao corpo e suavemente acomodei-me sobre os calcanhares. Olhando novamente para meu Senhor vi que Seus Pés eram idênticos ao latão cintilante e esplandecente... Foi quando ouvi Sua manifestação verbal ecoar produzindo um dilatado e pomposo estrondo como de muitas águas: “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todo o animal que se move sobre a terra. Eis que vos tenho dado toda erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda árvore em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento. E a todo animal da terra, e a toda ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento”. E continuo o Altíssimo em Suas precavidas recomendações, sendo que esta agora era de precaução e cuidado rigoroso, onde minha dedicação final deveria ser observada com muito empenho e diligência, pois dela dependia minha vida: “De toda árvore do jardim poderás comer livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás, porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. A Sua Face era mais luminosa que o Sol quando em seu brilho mais rutilante. Então me debrucei aos seus pés, sem vontade alguma, ante Sua feição semelhante à pedra de jaspe, sem intento algum a não ser o de Lhe ser submisso.

Eu me deleitava nessas sublimes recordações quando todo meu mundo desmoronou... Vi cair por terra toda alegria e entusiasmo e vi meu ser ruir completamente. Lá estava Eva, debulhada em lágrimas, em profundo estado de humilhação, tão desfigurada quanto um moribundo atormentado por uma doença altamente contagiosa. Aquilo era muito mais do que se poderia suportar com paciência e conformação. Sua personalidade natural fora abruptamente destruída. Sua feição outrora suave e linda agora não passava de um espectro desagradável à vista, assustadoramente disforme, causando extremo incômodo até mesmo ao senso estético menos exigente.

Eu pressupus de imediato a decorrência daquele drama funesto e já podia amargar as drásticas e irremediáveis consequências da justiça retribuitiva em suas aplicações competentes, sem a menor possibilidade de um atendimento restaurativo no âmbito judicial da avaliação do Eterno.

A deformação rápida e intensa de minha realidade, a mudança radical de tudo à minha volta, a modificação da natureza, o comportamento dos animais... Era demais para ser suportado. O corpo de Eva, antes emanando luz e graça, agora não era mais que uma estátua sem vida composta de visgo e breu; sua voz, um murmúrio confuso mesclado a expressões plangentes de lamento; sua face, aterrorizadamente amedrontada exprimia no olhar sobrecarregada tristeza e padecimento insuportável; sua mão densamente deformada e estirada me constrangia a aceitar aquilo que me tornaria tão física, moral e espiritualmente corrompido quanto ela.

Aquela situação aterrorizante não me deixava escolha. Tudo era muito traumático e inseguro. Uma decisão precisava ser tomada e os mecanismos de minha mente não conseguiam priorizar nada, me deixando cada vez mais cansado e afadigado. Não conseguia pensar nas opções nem ponderar sobre meus valores. Eu entendia o contexto, mas não me ajustava ao foco para organizar os pensamentos. Então, diante da dúvida cruel, escolhi Eva. Estirei a mão e aceitei o que me era oferecido, anuindo com as condições e sublevações de minha consciência.

Eu conhecia as sensações intermitentes da solidão. Não era nada razoável largar Eva à própria sorte; eu a amava demais. Não suportaria viver em pleno regalo sabendo de seu padecimento atroz. Sua perda repentina das condições biológicas mais portentosas certificava conclusivamente sua desolação expondo todos os sintomas de sua fase terminal. Eva estava espiritualmente morta. Suas atividades cerebrais estavam intactas e seu corpo vivo (?) se tornara na mais depreciável deformação.

No estado de imobilidade em que me achava sem encontrar respostas para qualquer estímulo, eu alonguei minha destra, tomei o fruto e compartilhei meu destino com ela, naquele cenário de terror e suspense. Esse ato abriria um leque das fatalidades mais sinistras em seu desfecho.

Eu não estava comendo para me alimentar ou desfrutar de algo saboroso. Não! O fruto, antes apreciável à vista, agora se fazia insípido, desinteressante e sem atrativos. Aquilo era um ritual onde eu avultava amargor sobre amargor. O desgosto, o pesar e o sentimento de repugnância se esvaiam de mim. Então percebi que estava tão desnudo quanto Eva. Olhei-me de alto a baixo e só me via como um desvalido, desarmado de glória e luz, como um esfolado. Sentia-me vulnerabilizado.

Os detalhes do meu corpo, antes aprimorados por fulgurante luz a contornava-me, agora eram somente vergonhosa nudez e excessivo desalento. Eu estava triste, decepcionado comigo mesmo, profundamente irritado e com o mais pesaroso sentimento de desesperança.

Dispus-me ao redor de Eva e tomei-a em meus braços, apertando-a com toda a minha robustez, com a mais pungente raiva e com o maior sentimento de pena e compaixão. Eu queria matá-la; mas decidi morto, viver com ela. Assinei minha sentença quando mastiguei e engoli aquela infrutescência desalmada cuja aptidão de aborrecimento me consumia.

Não há prazer na desobediência.

Sem a mínima unidade de som manifestada por minha lamúria, como quem precedia a mais funesta situação de terror, arrastei Eva por entre árvores e arbustos e busquei algo para cobrir nossa nudez na mais absoluta ausência de qualquer vigor ou brilho. Já não tínhamos nenhum vestígio do ornamento da glória de outrora. Sem tempo nem habilidades, fizemos com folhas de figueira uma mui mortiça e incivilizada cobertura para tentar esconder a demonstração do motivo da nossa desonrada nueza. Antes que pudéssemos tomar ciência correta do nosso fracasso ouvimos ecoar o som mais estrepitoso e carregado de melancolia traduzindo a voz mais embargada e trêmula de pranto: “Onde estás?”. Arrisquei esconder-me daquele que falava, mas a voz ecoava por todo o jardim como um grande e prolongado ruído, causando excitação e desordem me mergulhando ainda mais numa alvoroçada confusão. Sem tempo para argumentar e iniciar minha defesa ou fazer uma análise crítica de minha absintada realidade e apoiei-me apenas na mais vaga afirmação: “Ouvi Tua voz no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me”.

O meu estado de moribundo não era meu maior tormento e nem lembrava mais de Eva. Minha dor maior era sentir o sofrimento e decepção do meu Criador. Causar-lhe tal dissabor me era insuportável. Não ousei levantar a cabeça.

Sinto seu desgosto ao indagar: “Quem te mostrou que estavas nu?”. Não ousei responder... “Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses?”. Eu só queria retirar-me em debandada, mas não havia como fugir daquela objetiva e amarga realidade. Martirizando-me nas mais funestas aflições, entre tormentos e gemidos lamuriei contra a inalação súbita e as mais angustiosas lágrimas: “A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi”. ...,...,...