O TREM PARA O INFINITO (um continho insólito reeditado por carinho pessoal)

 

Ela já nem se lembrava mais, quantas vezes chegara de mala pronta àquela estação, seguia até lá com passos firmes e muita determinação na mente, o agente ferroviário já conhecia o seu semblante e, não tinha ideia do motivo dela nunca embarcar no trem, tampouco trocar a passagem para outro dia, ela simplesmente deixava o trem seguir seu caminho e quando seu apito não era mais ouvido, ela ia embora. Isso já acontecia há pelo menos quatro anos, sempre no mês de Novembro, muito estranha a atitude daquela jovem mulher, ele pensava.

 

 

 

Órfã desde muito cedo, criada em lares temporários onde nunca se adaptava, queria mais do mundo do que um lar simplesmente, seu espírito era desbravador e ávido por saber de muitas coisas, conhecer lugares diferentes, se lançar como um bólido solto no furacão sem pouso certo, ela precisava voar livre, sem amarras sociais, casamento ou qualquer elo demorado com outras pessoas, só que ela tinha a vida simples naquela cidadezinha pacata no Sul do País, mas, não queria seus pés plantados em nenhum chão, não desejava fazer parte de nenhuma história, queria ela mesma ser a sua própria história, sem fama, só e tanto se absorver de conhecimento, nem se importava com o que acontecesse com ela quando seu tempo terreno se extinguisse, suas sobras seriam absorvidas pela terra e a sua alma estaria livre no espaço, era seu planejado e sonhado destino.

 

Seus únicos bens eram um cordão de ouro pesado, uma pulseira com seu nome gravado em brilhante e um par de brincos de pingente, deixados dentro de um berço defronte a um abrigo de menores, junto com um bilhete escrito em letras femininas - Sua herança Maria Flor, flor dos meus dias e desterro da minha vida, apenas isso. Ela cresceu tendo a benção de nunca terem se desfeito de suas posses, as quais lhe foram entregues aos dezoitos anos, quando penhorou tudo e pagando a guarda em parcelas, lhe permitiu viver só num pensionato para moças e, com o trabalho como bordadeira vivia sem grandes dificuldades, sonhava, devorava livros e revistas, seu habitat natural era a pequena biblioteca da cidade. Não fez amizades, apenas recebia suas encomendas de bordados, entregava e recebia a sua paga.

Quando completou vinte e um anos, não se sentindo parte de nenhum lugar e se sentindo presa em suas ansiedades. Era Novembro e chovia, fez a mala com tudo que achava que iria precisar, se despediu da administradora do pensionato e se dirigiu para a plataforma de trem, com fogo de voo nos olhos e passos apressados, comprou uma passagem para qualquer lugar distante muitos quilômetros dali, já seria um começo. O trem se aproxima, ela se encaminha para a beirada da estação, todos entram, o trem parte e ela ouve o trem apitando até sumir da paisagem, mas suas pernas não seguem o seu pensamento.

 

Contrita, dá meia volta e segue para o pensionato e retoma suas atividades rotineiras até os próximos quatro Novembros, assim se passaram os anos e os sonhos permaneciam, mas, alguma coisa segurava suas pernas, não conseguia explicar o que acontecia com ela. Seu corpo envelhecia cedo, minguava-lhe a saúde, mas, nunca a vontade de ganhar o mundo. Algumas pessoas diziam que ela devia ter alguma questão espiritual que a prendia aquele lugar.

 

Liana mãe de Maria Flor, nunca deixou realmente a sua filha, ela vivia num casarão com seu marido rico, que nunca aceitou a chegada de Maria Flor e, ela acabou por deixá-la num orfanato. A sua casa tinha diversas toalhas, fronhas e lençóis bordados por Maria Flor. Liana velou por ela até que uma doença degenerativa a manteve no leito, com a mente ativa e o corpo sem resposta, todos os seus pensamentos eram para a sua filha, era como se agarrasse às pernas dela, impedindo o seu afastamento.

 

Maria Flor, em mais um Novembro, arruma a mala, se despede, segue para a estação com os passos arrastados, o peso nos ombros faz seus ossos velhos doerem aos trinta e três anos, mais uma vez compra a passagem para algum lugar pelo menos distante muitos quilômetros dali, sua mente ativa, viaja sem asas por seus sonhos de espaço e conhecimento, o trem chega, as pessoas sobem e Maria Flor embarca com o corpo arqueado, vigor na mente nos olhos embaçados de lágrimas, se acomoda e observa a paisagem pela janela. Quando o trem passa mais a frente, dá para ver a construção do casarão ao longe onde Liana, mãe de Maria Flor, dá o seu último suspiro. Muitos quilômetros depois, todos descem do trem e Maria Flor não pôde mais desembarcar, mas, sua alma virou uma pomba branca voando para o infinito.

 

 

 

 

 

** Reeditei, por amar esta minha composição em especial. Agradeço também às 61 visitas em 2020 e, aos motivadores e amáveis comentários, deixados na época da primeira publicação.

 

 

 

 

 

Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 10/07/2023
Reeditado em 10/07/2023
Código do texto: T7833488
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