À BEIRA DO CAIS
Valéria Gurgel
05/06/2023
Era apenas um aportamento breve da embarcação, de não mais de seis horas. No cais do porto de Menton, divisa entre França e Itália. Uma modesta tenda na encosta recortada e coberta de falésias era sempre florenciada para recepcionar os excursionistas. Um glamour natural, com ares bucólicos de lavandas provençais, só dividia espaço com o esplendor do azul de céu e mar entre seus mais de trezentos dias de plenitude solar. A natureza verdejante era borrifada pela leve brisa marítima. Quatro jovens, elegantes donzelas, de peles douradas às franjas do Mediterrâneo, atiravam olhares auspiciosos e não eram para os cavalheiros de fraque e cartola. Eles pareciam não se intimidar com a presença de alguns humildes estivadores e marujos dividindo as mesmas mesas degustando taças e mais taças de Veuve Clicquot .
Aquele antigo porto até então, não sabia que seria o marco do registro de uma intrigante história da vida real.
Madeleine debruçada sobre o balaústre de latão e madeiro tosco não conseguia desvencilhar seu olhar penetrante e enigmático de um dos presentes. Sua irmã Marjore encantada pela presença de Maurice, dono do simpático cãozinho Loup, que apareceu ali atraído pelo rico olor de carne assada, sequer percebeu o que estava se sucedendo.
Marcelle completamente seduzida por Amadeu, um dos estivadores de uma pequena embarcação ancorada, e sua irmã Marie se embriagando de vinho com Llyan, também não se deram conta do turbilhão dos fatos entrelaçados em uma tenda.
Pierre tentava, em vão, explicar a leviandade inusitada que ocorrera.
Madame Aline Charigot tapava os ouvidos com as mãos delgadas trêmulas, cobertas por um par de luvas pretas de cetim. Se negava ouvir qualquer explicação.
- Não, não pode ser verdade, Pierre Auguste Renoir! Como você pode permitir algo assim tão constrangedor? Ironia do destino, ou apenas mais uma dessas casualidades insensatas de porto? Um almoço de meros barqueiros e minhas queridas amigas, irmãs, expostas a essa situação ridícula?
- Acalme-se ma chèrie, não é nada disso que você está pensando…
- Como eu poderia supor que esses pobretões viriam até aqui? Eu não teria aceitado seu convite, jamais! Para passar vergonha com minhas quatro melhores amigas parisienses.
- Todas estão completamente enamoradas desses estivadores grosseiros, carregadores de caixas de limões de pequenas embarcações de Menton!
- Não diga isso, Aline! Não os julgue pelas aparências! Eles também são meus amigos! Um deles inclusive, é curador do Louvre. Os outros três; um artista, um colecionador e um poeta; Gustave Caillebotte, Charles Ephrussi e Julles Larfogue.
Muito desmoralizada por ter sido pega de surpresa, aquela que futuramente seria a esposa de Renoir sentou-se e elegantemente fazendo cara de paisagem, com seu abanico de seda em uma das mãos, tentava disfarçar a sua ira e constrangimento.
O artista forjou toda aquela cena, simplesmente para nutrir sua inspiração a ser pintada por ele, eternizando em tela, mais um cotidiano, suposto da vida real.
Um Impressionismo que fez destaque na Belle Epóque de Paris.
”O almoço dos barqueiros” 1880 – 1881
Pierre Auguste Renoir