O CATADOR DE SENTIMENTOS
Valéria Gurgel
Aquele homem sempre valorizava a reciclagem da gentileza.
Recolhendo sentimentos estragados e reconstruindo auto estima.
Acreditava não ser sustentável para o planeta o acúmulo de neurônios inúteis, descartados ou paralisados dentro da cachola craniana. Não se sentia uma ave de rapina, mas prezava por sobrevoar aterros. Ali sempre encontrava muitos descartes humanos aproveitáveis. Quantas desilusões enterradas ainda podem servir, pensava ele. Vidas inacabadas merecem um final feliz!
Causos mal contados, se acumulam e desemocionam jovens leitores no delicado processo da interpretação.
De onde vinha aquele senhor, que insistia em buscar alegrias abandonadas, sorrisos quebrados que costumavam aceitar cola?
Sempre soube que os olhares opacos nunca liam nas entrelinhas do sofrimento. E os ouvidos entupidos não apreciavam os simples saraus da emoção.
Era um homem simples, mas sabia que as impercepções de sensibilidades mutiladas, paralisavam todas as atitudes do bem.
As mãos inexpressivas não reconhecem necessidades maiúsculas.
Caminhou pelas ruas estreitas das cidades pacatas do interior de seu entorno por muitos anos. O que via era pés enraizados nas paixões mundanas, insensibilizando ações do amor.
Chegava a sentir um mal odor das muitas carcaças humanas que viviamno T7682379 por ali, em processo de quase putrefação.
Cansado de enxergar uma paisagem mórbida, decidiu viajar para a cidade grande. E constatou que os piores e verdadeiros lixões da desumanidade estavam dissimuladamente espalhados pelos centros urbanos, da grande metrópole, contaminando a atmosfera. Exibindo, tantas vezes, nas vitrines luxuosas, a insensibilidade de marca maior.
Aquele humilde catador ainda acreditava que, se houvesse um leve pulsar de um coração atento, seria possível reciclar a insensatez. A esperança tem garras fortes, agarra o que pode ser aproveitado. Seguia ele, lentamente, perambulando entre as avenidas, empurrando seu carrinho de madeira.
É possível transformar medos enferrujados em peças úteis, rodas recauchutadas para mover o ânimo, porque as correntes de união engatam a generosidade. Válvulas recuperáveis acendem as luzes das consciências.
Ele via muitos outdoors presos em arranha céus. Esses letreiros coloridos e luminosos descreviam afetos imaginários em linhas tortas.
Sim, sou um catador desses papeis, de tudo o que possa ser reaproveitado e reconstruído. Reafirmava ele em silêncio para si mesmo.
Gostaria de saber consertar todas as peças, esses restos humanos, quase uma existência desfragmentada. Vivo buscando ferramentas cabíveis, muitas possibilidades são descartadas.
Reescrevo algumas dessas histórias de vidas, em papelão, elas me inspiram livros recicláveis. O meu maior desejo é o de poder transformar palavras em artesanatos, ressignificando as formas e alfabetizando o sentimento.
Seguia absorto, pensando, caminhando por uma avenida movimentada, empurrando as rodas de sua imaginação, quando um caminhão em alta velocidade atropelou seu sonho.
Fim