SOLIDÃO COM PANTUFAS DE URSO COR DE ROSA

 

 

A noite estava tão fria, nem vinho tampouco as pantufas de urso cor de rosa, aqueciam como gostaria. Há tempos Juli sentia um vazio na alma, a solidão que desejou a vida toda, tornou-se opressiva e, má companheira.

 

Juli era de família grande, país, avós, três irmãs e dois irmãos, mas, nunca se sentiu parte integrante daquela família. A conexão entre eles era opaca, filha do meio, nem cobrada, nem paparicada, sentia-se apenas mais um ser, que sua mãe pariu.

 

Logo que pôde, caçou o rumo da estrada, mochila nas costas, tinha algumas economias, pois a madrinha, sempre lhe dera presentes em dinheiro, no aniversário, na Páscoa e no Natal. Juli tinha de tudo, então, pouco utilizava os valores recebidos, colocava tudo numa poupança, até se surpreendeu quanto havia juntado. O que mais lhe chocou, foi ver a reação da 'família'....foi como se tivesse dito...vou ali e já volto...ela não faria falta.

 

Comprou uma passagem, pro fim do mundo, depois iria pelas margens dos rios, pelas beiras das orlas das praias, pelos contornos dos lagos, até ter se banhado em todas as águas. Assim com a alma lavada e reabastecida de senso prático, curtiria a sua repleta solidão, talvez não tão sozinha, pois as suas pantufas de urso cor de rosa, estariam sempre com ela Devorava todos os livros, sobre qualquer assuntos, se abastecia de gentes. Tinha fé no dia sem futuros programados, se considerava depois de seis anos, uma pessoa sem passado...plena de essência, sem vaidades.

 

Quando fez vinte e cinco anos, Juli comemorou num casebre ao pé dos Andes, cercada de alpinistas de países diferentes, uma Torre de Babel harmoniosa. Se ela curtia o esporte....ok beeeem de longe, tinha pavor de altura, mas, estava na região e, resolveu visitar um dos acampamentos e, foi bem legal.

 

Foi nessa viagem, que percebeu de verdade, que não precisava de um amor pra ser feliz, se bastava. Assim pensava naquela altura.

 

Três anos depois, estava se banhando na Lagoa da Mansidão em uma cidadezinha do Centro Sul do Brasil, a água estava deliciosa, tinha muito pouca gente naquele dia, mas, um rapaz  mais ou menos próximo à ela, lhe chamou a sua atenção. Ele está lendo dentro d'água e, parecia muito concentrado. Solidão tudo bem, só que a curiosidade nunca é solitária, outros olhares também observavam, a cena inusitada. Juli se aproximou devagar, tentando ver qual era o livro, não deu pra ver tudo, mas, o nome do autor estava em destaque Edgar Alan Poe...ah! Um dos seus autores favoritos. Juli passou por ele, não queria invadir a privacidade dele. Seguiu lavando a alma por mais uma hora, saiu se enxugou e quando foi pegar a bicicleta, junto à mesma encontrou o livro, que o rapaz estava lendo e, nem sinal dele por perto. Seria um presente? Estranhou, mas, levou consigo.

 

Juli manteve o livro com ela por anos, lá pelos trinta resolveu sentar praça, procurou uma casinha numa comunidade pesqueira, em Arraial do Cabo no Rio de Janeiro, com algumas crônicas de viagens, ela havia conseguido um emprego numa revista eletrônica e, conseguiria se manter tranquilamente, em sua simplicidade. Tendo acesso à internet  podia trabalhar em qualquer lugar.  Montou sua casinha de quarto, sala, banheiro e uma cozinha pequenina, preencheu por dentro, só com o necessário, na mesinha de cabeceira, tinha a sua Bíblia e o livro do rapaz da Lagoa da Mansidão.

 

Comia peixe todos os dias com os pescadores, fez muitos amigos, tanta gente a convidava pra almoçar ou jantar, que praticamente só o café da manhã, preparava em casa.

 

Muitos riam, quando nas noites mais friazinhas, encontravam aquela jovem mulher, passeando pela areia, com um copo de plástico com vinho na mão e, as inseparáveis pantufas de urso cor de rosa, que já tinham alguns remendos rsss... Papeavam, se despediam e voltavam todos, para as suas casas. Juli arrumou até um companheiro gato cinzento e fofo, miava pedindo para entrar, ia e vinha quando queria, às vezes dormia sobre as pantufas, mas, como ela...amava liberdade.

 

A manhã do primeiro Verão na sua casinha, raiou gloriosa. Juli tomou um banho, colocou um biquíni, amarrou a canga na cintura, viseira sobre os cabelos soltos, bolsa com dinheiro, chaves, uma garrafa d'água, filtro solar e, suas havaianas brancas. Pretendia lagartear a manhã inteira, depois almoçaria na Tenda da Rose, que fazia o melhor peixe cozido dentro do coco do mundo, simples e saboroso. Tudo nos conformes, exceto por ficar ruborizada, quando deu de cara com o rapaz do livro, bem de papo com a Rose...o mundo é um grão de areia mesmo. Quando poderia imaginar, que veria ele de novo! Até riu por dentro, não entendendo o seu rubor repentino.

 

Cumprimentou a Rose festivamente, pediu um limonada e, o peixe no coco, sentou na mesinha de sempre e, do nada o rapaz perguntou a ela

- Você poderia me devolver o livro?

 

Alongar a história pra quê...já há algum tempo, os pescadores encontram nas noites mais friazinhas, um casal trocando sorrisos, carinhos e beijinhos, passeando de mãos dadas pela areia, um de pantufas de urso cor de rosa e outro de pantufas negras com imagens sombrias, sempre seguidos do seu gato cinza, que chamam de Poe.

 

Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 26/06/2022
Código do texto: T7545859
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