*A Cidade roubada

A Cidade roubada.

A cidade roubada.

Quem escreve tem por obrigação ler outros autores. Fazendo isso, não raro recebe, por telepatia, inspiração para novas viagens literárias. Li “O Homem que Roubou o Sol”, da escritora Lena Lustosa, e fiquei matutando sobre aquele absurdo que só uma mente privilegiada seria capaz de produzir. Não obstante, trouxe-me à mente outra história tão absurda quanto a primeira. É conveniente lembrar que o absurdo ainda está muito longe, para quem rouba desde o bodegueiro da esquina ao Banco Central do Brasil.

Conheci o Povoado de São Pedro da Água Branca em setembro de 1984, quando trabalhei na construção da Ferrovia de Carajás. Nesse povoado, existia um ponto de apoio com dormitórios e restaurante, destinado aos trabalhadores da empresa. Claro que uma localidade encravada no meio do nada, nada tinha de especial e isso ninguém tome como crítica depreciativa, pois só o fato de existir já me parecia uma coisa muito boa. Esse povoado era constituído, na sua maioria, de lavradores de subsistência e comerciantes incipientes.

Embora eu não tenha certeza, minha convicção era de que São Pedro da Água Branca pertencia ao município paraense de Abel Figueiredo, que era cortado pela antiga Rodovia PA-70, hoje BR-222. Abel Figueiredo limita-se à esquerda com Bom Jesus do Tocantins e ao sul com Vila Nova dos Martírios-MA.

A construção da Ferrovia deu a esse povoado alguma visibilidade. Na minha não expressiva concepção, onde passa uma estrada, chega o progresso e isso, de fato, aconteceu com o povoado, tanto que, pelos anos 1997/98, ele conseguiu sua emancipação política. Porém, o mais curioso era que o povoado estava encravado no estado do Pará, no limite geográfico com o Maranhão, com algumas residências neste estado. Resumindo: a mesma cidade ocupava dois estados brasileiros, sendo que quase cem por cento do seu perímetro urbano localizava-se no Pará.

A linha divisória entre os dois estados segue em reta visualmente perfeita, desde o Rio Tocantins até as proximidades da localidade conhecida como Km 38, percorrendo mais de 150 km de extensão.

Com a emancipação do novo município, aconteceu algo certamente único no mundo: roubaram a cidade do estado do Pará. Da noite para o dia, São Pedro da Água Branca dormiu paraense e quando acordou, era maranhense.

Para a história da cidade, armengaram outra fictícia, sem pé nem pescoço. Disseram que o povoado pertencia ao município de Imperatriz - MA., afirmação sem base cartográfica nenhuma.

Qualquer pessoa que me leia agora provavelmente indagará como isso pode ter acontecido. Como alguém poderia roubar uma cidade de um local e a colocá-la em outro? Teria o mínimo cabimento tal afirmativa? Pois bem, ninguém sabia de quem fora a ideia de afastar a linha divisória que passava reta, fazendo-a circundar toda a cidade, invadindo o estado do Pará e, em seguida, retornar ao traçado antigo.

Eu já tinha visto de tudo nesse ramo. Agricultor afastar os marcos divisórios e refazer cercas para invadir o terreno vizinho; gente fraudar documentos de escrituras de terra; terras com uma quantidade real de hectares inferior ao que constava nas escrituras; escrituras de terras imaginárias, mas invadir um Estado Federativo para roubar uma cidade, nunca tive a menor suposição de que era possível.

A despeito de tudo isso, São Pedro da Água Branca continua crescendo para além da fronteira fraudada, e agora, de fato e de registro, pertencendo a dois estados diferentes. Nada impede de que, no futuro, outro avanço se repita.

Qualquer pessoa, mesmo sem entender nada de carta geográfica, mas com um pouco de senso crítico, vendo através do Google Maps ou Google Earth, notará com surpresa, como foi realizada a maracutaia.

Num país onde alguém rouba o sol, roubar uma cidade deixa de ser novidade.

Eu vi, sei e escrevo.

PS.: Existe pelo menos um caso parecido no mundo. A cidade de Baarle-Nassau , na Holanda teve suas foranteiras definidas em 1955, resolvendo um problema que durava desde a idade média. Curioso nisso tudo é que parte da cidade ficou pertencendo a Bélgica e outra parte à Holanda. Tornou-se ponto turístico, especialmente porque tem bares e casas que pertencem simultaneamente aos dois paises.

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Filosofia de bogequim

Quando alguém perguntar: Posso ser sincero com você? Cuida-te, vem grosserias pelo caminho.