A festa de aniversário do coronel Vittorio Gogliati        
 
 
Não importa as condições do tempo, em tempo qualquer, cruzar o Atlântico, jamais fora fácil; e difícil haverá de ser para sempre, sair do novo continente, ultrapassar o Grande Oceano, e alcançar o velho mundo... A meu ver, para fazê-lo, exige-se no mínimo, um máximo e bem definido motivo, especialmente, porque para concretizar tal façanha, há apenas duas únicas vias, quais sejam, caminha-se sobre a superfície dessas águas colossais, com a certeza de que em nenhum ponto e momento, tomar-se-á pé, ou crente de que é tudo azul, poder-se-á cruzar os ares envolto e protegido por nuvens sustentadas abaixo e acima por um profundo anil. Assim para eu quebrar o inteiro medo das alturas, que comigo nascera, o nascimento da minha netinha, fiquei a esperar.
Em tempo, pois, tempo para dirimir possíveis dúvidas, sempre há, digo que para a quebra daquele medo, não fiz acepção entre os dois gêneros que há para distinguir netos, quais sejam o feminino e o masculino, pois para que seja feita tal distinção, naturalmente, antes que à luz sejam eles dados, outorga-se o poder ao acaso, caso esse haja e aja... Aqui e alhures, diga-se de passagem, deve a prezada leitora tolerar, por ser necessária a ausência da inconveniência, o uso da palavra netos, pois essa está a valer também para netas...
Pouco tempo consumiu a minha espera!
Esperei durante cinco anos, por um primeiro rebento que do meu já maduro galho, houve por bem eclodir; logo, enquanto esperava, em terra firme fiquei do lado de cá, deixando de lá, o Velho Mundo.
Recentemente, só depois de saber que nascera a minha netinha primogênita, posso dizer que a esperá-la, sem pressa, estivera a aguardar que brotasse mais vigor em meu próprio tronco — e haveria de ser suficiente o bastante — para que eu pudesse cruzar o Atlântico.
Assim fomos à Itália conhecer uma frágil criança não menos forte que as outras de seis meses de idade; entretanto, com força suficiente para livrar um novo avô daquele velho medo das alturas.
Lá chegando, só não me encantei com o calor do mês de julho; calor fora de época, prematuro para o sétimo mês do ano que meu relógio de pulso marcava; calor do nosso dezembro, que meu relógio biológico, para aceitá-lo, forçado, haveria de mexer em seus ponteiros químicos, e para tanto, um tanto deveria voltá-los no tempo, ou, lançá-los além daqueles dias.
Muito envolvidos ficamos todos com aquele rebentinho — a mãe, o pai, a avó, os parentes europeus e eu — entretanto, no início da fila do envolvimento, desejei estar à frente de todos, ou antes, à frente do meu lugar, só admitiria que ficasse a minha filha, pois à frente da mãe, é difícil de ficar, senão impossível.
Ao ficarmos por lá, por vários dias, pelas manhãs — não menos que por três delas, por semana — enquanto minha filha e genro trabalhavam, íamos, a neta, a minha esposa e eu, buscar água potável em uma fonte bem próxima da moradia deles; a meio caminho desse trajeto, encontra-se — e que de lá, jamais saia — contígua a uma grande área pavimentada; creio que destinada às reuniões sociais — um grande renque de frondosas árvores, não menos que cinquenta espécimes; espaçadas entre si, por quatro a seis metros, foram plantadas cuidadosamente, há meio século; tão bem perfiladas ficaram, a nos lembrar soldados em forma, que estão a esperar os transeuntes que à moda do seus oficiais, passam em revista a tropa; e para mais se assemelharem a um grupamento militar recebendo alguma merecida homenagem, está ao pé de cada uma de todas as árvores, uma pequenina lâmpada, e uma placa onde fora gravado o nome de um soldado que dessa região, fora filho; filho que perdera a  vida nos campos de batalha das grandes guerras, senão na primeira, na segunda, sim.
Muito interessante achei aquela homenagem! Grande e contínua atenção, tive ao ler o nome de cada soldado, a data do seu nascimento, a data da sua morte, e a sua patente ali grafados. Muito justa, julguei aquela forma de se fazer reverência a uma vida ceifada, ao pensar que à custa da seiva perene — se essa não se perdesse, ou antes, se essa sobre uma essa não fosse parar — de cada uma viva e exuberante árvore daquelas, lembrado será para sempre, cada um daqueles heróis mortos. E já dissera antes: três vezes por semana, por lá eu passava, e não deixava de reler aqueles nomes; sem poder evitar, diante daquela alusão, uma ilusão me envolvia, pois, me via, por fugazes instantes — se é que para tais visões há demanda de tempo — nos campos de batalha, ao lado de um ou de outro soldado em um dos seus dias de aflita peleja; e houve momentos, em que presenciei, exatamente o dia em que a vida, de um ou de outro daqueles bravos homens, fora segada pelo inimigo, a mando da cruel morte; foi assim que, por vários dias por lá ao passar, várias batalhas assisti, várias mortes, aterrorizado, as repudiei todas, ainda que não pude evitá-las, nem mesmo de vê-las...
Disse que o calor do mês de julho de lá — o da Itália central — é muito estranho para algumas pessoas e não menos forte para todas; mas, mais ainda fora para mim. Não consigo imaginar que em tal estação do ano, o mês de julho milanês seria mais bem tolerado se em algum lugar diferente de Pregnana Milanese se desse, pois, esse sétimo mês, sempre pode esfriar o ânimo de qualquer brasileiro, que pudesse desejar o calor do nosso primeiro mês do ano... Assim, em um daqueles dias, ou antes, em uma daquelas noites, por grande desconforto no quarto, ou em qualquer outro cômodo da casa, para confortar também a minha curiosidade, fui ver as plaquinhas, aquelas que quando iluminadas deixavam em maior destaque, os nomes daqueles soldados, cujas vidas foram apagadas durante as duas grandes guerras.
Tanto gostei do que vi, que por lá outras vezes quisera passar, e a cada vez que o fazia, ficava cada vez mais fascinado por ver tanta justiça em um único ponto de luz ao iluminar o nome, separadamente, de cada um dos filhos daquele lugar. Daquele lugar? Sim! Dito já foi, cada nome que ali grafado estava, fora de um jovem que nessa região nascera, e morrera em algum campo de batalha, distante dali. Agora, neste sítio, bem longe daquelas áreas, onde prevaleceram as trevas da morte, pequeninas luzes, em memória de vidas apagadas, a iluminar a memória de quem por ali passa, sem nenhuma sombra de dúvida, estão a fazer grande justiça; justiça menor, diga-se de passagem, promove o Sol, por ser menos justo, ao dispor do seu grande lume indistintamente a todos viventes, pois, muita vez, ofusca com seu intenso brilho os defeitos de muitos  vivos que ora mortos, em outras placas têm seus nomes gravados, por conta de seus atos heroicos não feitos...
Tão logo vi essas placas pela primeira vez, mais vezes, desejei revê-las, até que ao tentar realizar esse meu desejo pela última vez, antes da minha volta ao Brasil, fui impedido a fazê-lo, pois naquele dia, ou antes, naquela noite em que fora frustrada essa minha última visita, se deu, mais ou menos, às duas horas; ao me aproximar da primeira árvore que seria a última se ao vir do sul, dela me aproximasse, fui impedido por três soldados que se posicionavam atrás de alguns cavaletes que foram usados a barrarem o trânsito àquela grande área social; disse-me um deles:
— Hoje, dia vinte e oito de julho — data por nós esperada — lembra-nos exatamente o dia em que eclodira a primeira grande guerra; nesse dia — hoje — nos preparando para comemorar o aniversário de um dos nossos comandantes; a ser assim, a quaisquer pessoas que não foram convidadas por nós, vedamos o acesso a este local, logo, não podes participar da nossa reunião, assim, do lado de fora dos limites aonde ela se dará, haverás de ficar.
Estranhei a comemoração a céu aberto em tão fechada noite; mas, respeitando, por ordem recebida, o tapume, permaneci do lado de fora a observar o que se passava do lado de dentro. E eis o que presenciei:
Sob dez barracas de campanha contidas por aquele espaço reservado, estavam mesas e cadeiras guarnecidas com louças, talheres, e copos bem dispostos sob a direção de um militar que se orientava por um “vade-mécum” de cerimonial militar do exército. Percebi que cinco daquelas barracas tinham características distintas das cinco outras, como que distintos destinos havia para cada um desses dois conjuntos. Por forte curiosidade minha, que por força dos meus olhos, aumentava mais e mais, pedi explicações a um dos três militares, que ignorava a minha presença, pois, fora dos limites da “festa”, e por obediência às ordens, permanecera eu.
Qual o porquê da diferença entre estas barracas?
Respondeu-me ele:
— Estas cinco mais próximas que o senhor vê, e tudo que sob elas está, compõem parte dos nossos petrechos usados durante a primeira grande guerra; as cinco outras, e tudo que o senhor vê, sob a sua proteção delas, estão o nossos utensílios militares próprios à segunda guerra mundial.
Inseguro com a minha frouxa convicção sobre o meu estado de consciência, julguei mais seguro, pensar que estava bem acordado; mas, em seguida, me vi forçado a acatar as dúvidas da fisiologia — que só deixam de ser imperativas, para se tornarem coercivas, para tanto, invariavelmente usam vias livres e eferentes — assim, para dirimir essa insegurança, em ato contínuo, porém, segmentado por intervalos de tempo regulares, fechei e abri rapidamente os olhos, com efeito, fiquei às escuras por um tempo diminuto, que se maior fosse, teria me impedido de ver de onde saíram para ocupar todo aquele espaço, dois grandes grupamentos militares que a envergar estavam fardas de gala. Grupamentos de fardas de gala? Sim! Um deles constituído por militares do período da primeira grande guerra, e o outro, por outros militares, que da segunda grande guerra, bem poderiam ter participado...
A curiosidade quando muito cresce, ainda que devagar, a divagar, nos conduz, mas, antes que essa brotasse, perguntei:
Quem são vocês? Que comemoração é esta? Que lugar e horário impróprios são estes, para um encontro tão inusitado?
— Por parte, lhe daremos todas as respostas para todas as perguntas suas, disse-me um dos soldados, e logo em seguida, continuou:
— Sou o sargento Giuseppe Cattaneo, nasci aqui em Milão, no dia quatorze de setembro de 1896; se não tivessem retirado do meu corpo, indevidamente, os meus dois “dog tags” * em quinze de maio de 1916, logo após a minha morte, você poderia vê-los ainda comigo e sobre o meu peito.
Não bastasse tão formidável situação que me envolvera, para pear ainda mais os meus sentidos, se é que tal situação estava a acontecer, ou, se é que minha mente propiciara-me esse ou qualquer outro raciocínio, o certo é que me recordando do fato ou da alucinação, lembra-me que fiquei ainda mais enleado com essa resposta — a do sargento — e ele continuou com as apresentações: este, à minha direita, é o soldado Giovanni Ferrario que nasceu em três de junho de 1877 e faleceu um dia após a minha morte; este outro é o também soldado Paolo Cogliati que nasceu um ano antes de mim, em dezoito de setembro de 1895, e faleceu no dia dois de outubro de 1918, portanto, um mês antes de terminar aquela grande barbárie que em onze de novembro de 1918 teve o seu termo.
Pensei: de um sonho, posso sair à realidade se à outra entrada deste espaço, caminhar; pensei e fui caminhando à outra extremidade daquela área social — local da festa — quando me vi diante de três outros militares; e um deles, disse-me:
— Senhor, detenha-te, neste espaço não podes se adentrar. Eu sou o tenente Enrico Verpilio, estes dois outros que estão ao meu lado direito e esquerdo, respectivamente, são os sargentos Gaspare Carsenzuola e Vittorio Re; a partir desta cancela, não permitimos o trânsito de estranhos, pois, tão somente, entre conhecidos, comemoramos o aniversário do nosso comandante, o coronel Vittorio Gogliati, comandante do nosso batalhão de infantaria; se queres vê-lo, ei-lo bem ali, à tua esquerda; ele está a sair daquela barraca; e continuou o militar:
— Nosso comandante faleceu no dia oito de julho de 1943 aos 34 anos de idade; hoje estamos em festa; no mês de julho de 1952 e de 1977 aqui também, nos reuníramos, com essa mesma intenção; novamente, o faremos em 2027; e a cada vinte e cinco anos, nos encontraremos mais uma vez, aqui neste mesmo lugar. Despedindo-se de mim, este oficial, disse-me ainda:
— O senhor está dispensado, retire-te, por favor!
Disposto a me retirar daquele formidável sítio, porém sem pressa, e não lhe dando as costas, fui me afastando passo a passo, mas, não sem antes, deixar que ficassem por mais alguns instantes os meus olhos entre aqueles contingentes fardados; por isto, e em seguida, me deparei com um oficial usando sobre a face externa da manga esquerda do seu uniforme, à altura do seu braço, o seguinte emblema:
Um pequeno retângulo com lados aproximadamente de seis e oito centímetros com seus cantos quebrados, circundado por um halo vermelho, a encerrar em fundo amarelo, a figura de uma cobra na cor verde, fumando um cachimbo na cor vermelha, do qual saia um fiapo de fumaça na cor branca; na parte superior desse retângulo, inseria-se um outro pequeno retângulo, sobre um fundo azul, com lados aproximadamente de seis e dois  centímetros com seus cantos superiores também quebrados, onde bem se destacava, a palavra Brasil grafado na cor branca.
Tal visão, muito mais avivou a minha curiosidade e um pouco apagou o meu senso de obediência, assim, voltando-me ao oficial que me despedira, de forma incisiva, lhe disse:
Posso falar com aquele oficial?
— Com qual deles? Respondeu-me o meu interlocutor, quando então, completei o meu pedido, ao dizer:
Desejo muito falar com aquele, aquele que neste momento, está a falar com o coronel Gogliati.
— Tenha a bondade, aguarda um instante, vou avisá-lo que o senhor tenciona se dirigir a ele! Assim disse-me aquele oficial.
Pouco esperei, e fui convidado a estar diante daquele oficial. Por tanto que fiquei estarrecido, ao confirmar que estava diante de um compatriota meu — o capitão capelão Antônio Álvares da Silva — se alguma palavra lhe dirigi, não me lembra agora, mas, algum diálogo houve, pois bem me lembro que dele ouvi estas palavras:
— Filho! Não te assustes! Não te preocupes em dar explicações sobre este nosso encontro; vai em paz, e que Deus te abençoe, e ainda, abençoe toda a tua família! 
Voltei para casa, com frio na alma! Nesse mesmo dia, à noite, ao meu genro relatei o ocorrido, ou antes, tentei relatá-lo, pois espantadíssimo, ele sem nenhuma demora, ou até bruscamente, interrompendo-me, a dizer-me:
— Meu sogro! Este assunto é embaraçoso e desgastante, ou antes, continua sendo, pois já o fora antes, quando em 1977, duas pessoas — dois senhores — relataram ter presenciado essa festa, ou antes, esse grotesco encontro de militares que agora estás a mencionar ter assistido; tanta repercussão teve esse fantasioso relato, que envolveu até o nosso exército. Eu particularmente, conheço essa história infundada, fruto da imaginação de alguém, cuja mente quase que em brasas pelo nosso calor de julho, a concebeu; e digo-te mais, por tão bem conhecer esse disparate, se te der ouvidos, hás de me dizer que conheceu pessoalmente, um tal coronel Vittorio Gogliati ao lado dos seus comandados, e ainda haverás de dizer, sendo tu brasileiro, que conversou com algum oficial do seu país, finalmente, dirás que teve notícias de festas passadas, e das que estão por vir; a ser assim, ser diferente não poderá, logo, logo, ou melhor, neste momento, peço-te: não te exponhas ao ridículo, não relates essa fantasia a mais ninguém.
 
* - Dog tag é o nome destinado às plaquetas de identificação usadas por militares; recebem este nome por se assemelharem, em função, com coleiras usadas em cães (do inglês, dog tags). Estas plaquetas são usadas principalmente para a identificação de soldados mortos ou feridos; habitualmente os soldados portam dois dog tags; um deles deve ficar com o corpo, para identificação no próprio local; o segundo tag deve ser removido do soldado somente em caso de morte, para confirmação da mesma; a
pequena corrente que une os dois tags serve para colocar no dedão do pé do corpo do soldado morto, facilitando assim, a sua identificação. No caso de um membro possuir uma condição que requer atenção especial, uma plaqueta vermelha adicional contendo tal informação é colocada junta dos outros dog tags.
As informações contidas nestas plaquetas são as seguintes: Na primeira linha, encontra-se o nome do país de origem do militar; na segunda, há o nome completo do militar, podendo ter iniciais abreviadas; na terceira linha, figura o número da Região Militar onde o mesmo se alistou e o seu número de ordem; na quarta linha, há à frente de um “T” (de injeção antitetânica) o ano em que a mesma foi recebida pelo militar, e à direita há a sua tipagem sanguínea (não havia conhecimento sobre o fator Rh à época); finalmente, na última linha e ao centro, figurava a identificação e a patente do militar, soldado ou oficial.












.
 
Eugene Garrett
Enviado por Eugene Garrett em 15/01/2020
Reeditado em 15/01/2020
Código do texto: T6842783
Classificação de conteúdo: seguro