Volta, teu tempo chegará!
Na manhã daquele Domingo, que se dera no vigésimo nono dia do primeiro mês do ano, estávamos em viagem e dispostos a seguir em frente. Ainda chovia; há quatro dias o Céu derramava água de sobra sobre a Terra que estivera ressequida por meses.
Precisávamos continuar a nossa jornada, ou antes, desejávamos continuar a nossa cavalgada, mas, naquele dia, sair para qualquer lugar, se impossível não fosse, inconveniente não deixaria de ser, logo, ao dia seguinte, adiamos a nossa partida.
Se tempo melhor não anunciara a manhã desse dia, seguir debaixo de tanta chuva, haveria de ser a nós mais um desejo, e menos um prazer; mas, muita vez, pelo menos trocamos o mais... Assim, já pela manhã, saímos. Sob tanta água cedida pelo Céu, consideramos que há quarenta e um dias, comíamos poeira pelas estradas, agora, essas nos ofereciam uma sopa de barro; contudo, tais circunstâncias nos agradavam e aborreciam a tropa, pois bem aos nossos olhos, a postura dela denunciava-lhe o desânimo.
Durante o nosso trajeto, por deliberada escolha, buscávamos estradas de terra, essas, muita vez, mal conservadas, apresentavam buracos grandes e pequenos aqui e ali, não obstante, fossem mais apropriadas e mais originais, quando serviam de rota a tropeiros...
Dito já fora, há cinco dias sem descanso, inundava-se a Terra de chuva e mais chuva, ou antes, por dias a fio, em desafio, o Céu devolvia à Terra todas as suas águas dela sequestradas. Por vez, a chuva afinava, tornava-se uma garoa, quase parava, contudo, só queria tomar fôlego, pois logo em seguida, a tomar corpo, novamente engrossava sua cortina de pérolas acoitada pelo vento frio.
A estrada era em alguns momentos, um rio de lama a esconder seus pilões; para tal condição, os muares — mulas e burros — são as melhores montarias; verifica-se essa aptidão, simplesmente ao observar, quão diferente é o modo desses animais quando caminham em terreno duvidoso, visto que, pisam com toda cautela, pois antes avaliam com a máxima segurança onde devem pôr as mãos — as patas dianteiras — para isso dispõem do olfato; misteriosamente, é esse sentido que em situações a exigir o tato, comanda as patas, pois com a cabeça abaixada, os muares vão cheirando e assoprando o caminho que lhes causa insegurança; eis a singular e misteriosa habilidade dessas criaturas! A inteligência humana tem se mostrado incapaz de explicar ou compreender essa aptidão notada nesses quadrúpedes; o certo é que, procedendo daquele modo, esses inteligentes animais, impropriamente chamados de bestas ou burros, dificilmente põem as patas em algum buraco, logo, sob tais riscos, não se constrangem; tanto são seguros e determinados nessas situações, que resistem ao comando daquele que os conduz, se esse se torna intempestivo ou afoito, pois quando estão às ordens de um imprudente, sempre teimam, ou seja, quando o juízo da cavalgadura se sobrepõe ao do cavaleiro que deseja orientá-la, surge esse desiquilíbrio entre quem está por cima e quem por baixo está... A ser assim, bem montados, enfrentamos a chuva que Deus dava.
Foi em curto prazo! O muito que as capas de chuva tapavam, ficou úmido, e o pouco desprotegido, ficou encharcado. O contentamento inicialmente em ascensão, com a queda temperatura, foi esfriando, embora a chuva começasse a perder força.
Que benefício poderia trazer a chuva amainando-se, para receber do vento frio o poder para recrudescer a sua capacidade de incomodar? Bom! Tudo que aconteceu deu-se porque estávamos distantes do início do caminho, e longe do seu fim! Dessa estrada alcançamos o seu ponto médio, meio desanimados... Ainda assim, tudo caminhava bem, ainda que bem encharcados estivéssemos. Ninguém reclamava, mas o silêncio de cada um não escondia as suas frias e mudas queixas, pois o nosso próximo abrigo, distava de nós a uns trinta quilômetros.
Nesse momento, percebi que o frio, aos poucos, estava a consumir o calor do meu corpo; tal desconforto notei, quando em mim iniciou um leve tremor; a princípio, intermitente; pouco demorou, e esses calafrios foram amiudando-se até se tornarem contínuos; com isso, o incômodo de forma insidiosa, foi crescendo. Por julgar ser passageiro esse pesar, ele também estaria de passagem ao cruzar com os meus companheiros, assim abri mão de quaisquer queixas que poderia lhes fazer; fui aguentando o quanto pude, não obstante o mal-estar fosse aumentando sempre e fazendo-se acompanhar por um calor crescente. Chegava a febre anunciando alguma enfermidade?
Sob um sensação de calor intenso, e não com menos temor, olhava para as orelhas acabanadas da minha mula Pomona, e as via enormes, descomunais, quase que a alcançar os limites laterais da estrada; sua desmedida cabeça invertera-se, voltava-se para cima apoiando-se nas suas próprias orelhas, como se fossem essas um terceiro e grotesco par de patas; a própria mula estava bastante alta, o chão fugia-lhe dos pés e distanciava-se dos meus olhos; num dado momento, ela foi redobrando o passo, ultrapassou logo os outros animais, e se dispôs em marcha forçada; desenfreada, logo pode correr a toda brida, com suas enormes patas; tanto foi aumentando a sua velocidade que sua crina incendiou-se, tornando-se um enorme cordão em chamas; as labaredas brotando do seu pescoço lambiam-me o rosto; diante daquele calor terrível, meu corpo esvaia-se em copioso suor; durante todo esse afã desesperador, ela, a minha horrenda cavalgadura, ia retorcendo o pescoço, mostrando-me a boca escancarada e um sorriso aterrador. De repente, ela estacou-se diante de um portão descomunal fixo entre duas enormes e fumegantes colunas; não se refreando à frente daquela formidável barreira, com poucos e assustares saltos, lançou-me por terra, e novamente saiu à disparada. Com a terrível queda, perdi os sentidos; tão logo os recobrei, comecei a gritar: abram o portão! Abram o portão! Quando já estava me desfalecendo, abriu-se a colossal passagem. Tomado pela mão, fui conduzido diante de uma grande mesa de pedra onde estavam apoiados dois enormes livros, um ao lado do outro; arrebatado pelo incompreensível, vi à minha frente um ente com face e mãos não bem definidas, tendo entre nós a mesa que sustentava os dois grandes volumes, de permeio; em seguida, serenamente, esse espectro voltando-se para mim, disse-me:
— Qual é o teu desejo?
Sua voz não me aterrorizou, antes, deu-me paz. Quero falar ao meu avô Manoel Rosa, lhe respondi.
Aquele Ente da Razão folheou o grande livro que estava à sua direita, e respondeu-me:
— Teu avô não está entre nós.
Supus que aquela criatura de outra esfera, consultaria o outro grande livro, contudo não o fez, e isso me levou à outra indagação, ou antes, a uma afirmação:
Tenha a bondade, consulte o outro livro!
Respondeu-me aquele etéreo ente.
— Poderia fazê-lo se tu estivesses entre nós!
Esse diálogo nada me esclareceu, ainda assim, nenhum temor causou-me; continuei com nossa conversa das alturas.
Quero falar à minha avó Geraldina Lobato Faria. Novamente folheando o grande livro que ficava à sua direita, respondeu-me aquela criatura:
— Aguarda-a!
Minha vovó logo surgiu, vestia-se toda de branco; sem dúvida, estava à frente dos meus olhos, e ao alcance das minhas mãos, a minha querida vovó que há quarenta anos havia partido, deixando-me só, e muito triste. Ela estendeu-me as suas mãos, abraçou-me e com aquele mesmo olhar, aquela mesma voz que tantas vezes acalentara-me, disse-me:
— Volta, teu tempo chegará! Vai, e faz tudo para que nos reencontremos!
Não sei se de algum lugar voltei, pois também não sei se fui a algum lugar, mas vi-me deitado sobre algo que poderia ser uma cama. Segurava em uma das minhas mãos um senhor idoso; usava uma batina branca. No mesmo quarto estavam meus três queridos companheiros de jornada, entre outras pessoas desconhecidas; todos olhavam para mim com os olhos benevolentes. Estava a me despertar? Saíra de um estado comatoso? Estava entre os mortos? Voltava ao mundo dos vivos? Eu não encontrava resposta a tais indagações. Precisava a outrem perguntar, e o fiz: onde estou? O que me aconteceu? Todos me olhavam; minhas palavras, a mim pareceram a eles, intempestivas, quando não vãs, pois poderiam ser elas de um ressurreto, ou de alguém que se livrara das garras da vida; contudo, para dirimir as minhas próprias dúvidas fiz esta reflexão: ao passar por uma ígnea vivência, incinerada fora boa parte do meu discernimento, ou sob o efeito de uma falsa experiência, fora crestada uma significativa fração da minha capacidade para raciocinar? Depois de tudo isso, creio que voltei à realidade quando percebi que todas aquelas pessoas recebiam-me com alegria; e entre elas, se encontrava o meu amável cunhado — companheiro inseparável às horas incertas — que me disse:
— Eugene! Fostes vítima de uma infecção viral, tão comprometido ficara o teu cérebro, que entraste em coma; hoje, passados vinte e seis dias, contados a partir do início dessa grave afecção, encontras-te bem, logo, logo, ganharemos a estrada.
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