Meus cães de Gnaisse*
À porta de entrada da minha casa, que saída à rua dá, encontram-se, sobre duas colunas, meus dois cães; são de pedra — de pedra Gnaisse — a ser assim, pétrea haverá de ser a fidelidade que esses meus fieis amigos, devotam a mim. O escultor que os concebera, tão somente, para fazê-los, de zelo maior dispôs ao usar um cinzel e um maço; e para torná-los tão semelhantes entre si, quando não, idênticos, esforço redobrado empenhara, todavia, só depois que os entregou à luz, melhor pode vê-los quão afins entre si, ficaram, logo, sob tão grande par de perfeições artísticas, esse artesão não mais conseguiu ver no seu próprio trabalho, dois indivíduos, ainda que muito desejasse identificar o seu primogênito; assim, para mais consolidar o seu êxito, por tê-los concebido em formas precisamente análogas, quis batizá-los com os estes nomes: White e Branco; tais nomes não seriam mais adequados, pois tão logo o próprio Branco recebeu o seu nome, com o outro, ou seja, com o outro nome dado ao seu par, plenamente se satisfez; portanto, por mais que desejasse alguém, vê-los distintos um do outro, não poderia encontrar, ainda que fosse muito grande o seu querer, sequer uma mínima diferença que pudesse dar a eles identidades diversas. A dificuldade para descobrir quem era quem, quando lado a lado se postavam essas duas criaturas, não era menor que o capricho e gosto que experimentam dois cachorros disputando um mesmo osso...
Quando diante dos meus olhos estiveram pela primeira vez, aquelas duas criaturas prodigiosas; ao olhá-las, tive a nítida sensação de que estava a portar visão dupla... assim fiquei convencido, de aquelas esculturas não foram talhadas não por um cinzel divino, mas, sim, moldadas e polidas pelas mãos de um artífice, a mando do Grande Arquiteto do Universo, contudo, para me eximir dessa descabida convicção, entendi que bom êxito alcançaria, se refletisse sobre a real origem dos inanimados blocos de rocha que serviram de matéria prima para a consecução daquela elabora obra de arte; assim, desta maneira julguei: no princípio, a lava vulcânica, matriz daquela rocha, tão somente seria singular pela sua cor e textura, ou seja, destacar-se-ia apenas pela sua cor, e pelo seu aspecto microscópico resultante da forma em que seus cristais se encontravam unidos entre si; e isso se deu quando aquela lava se encontrava presa nas entranhas da terra, ao desejar sentir o calor do sol, se derramou na superfície daquela que a prendia, e aprisionou em sua garganta incandescente, para o seu próprio alimento, o ar; com isso, ela se solidificou; então, o vento, desejando resgatar o seu irmão menor — o ar — começou o seu lento e eterno trabalho de corroer aqueles blocos malconformados; esses bem querendo receber afagos, ainda assim, não se preocuparam com o tempo, pois quando o vento chegava, por ele, eles estavam a esperar, e quando ele partia, tranquilos, eles ficavam, pois, brevemente, ele — o vento — haveria de voltar... Com essa certeza, aqueles blocos continuavam envoltos por sua eterna espera... Assim, meus olhos desocupados sob o jugo dos meus pensamentos livres, estavam diante das verdadeiras e únicas testemunhas oculares da história. Depois desse envolvimento emocional, aqueles cães se apresentaram a mim, como entes esquisitos e vivos; digo assim, porque ao olhá-los com a sã consciência que bem preservo até hoje, sem muito esforço, identifiquei criaturas descomunais e não tão inertes, pois, delas ao retirar os meus olhos, para logo em seguida, a elas voltá-los, percebi que também os olhos pétreos daqueles caninos, algum tanto perdiam a sua rigidez, para admirar as imperfeições do meu rosto...
Voltemos à porta da minha casa:
A rua onde está a minha casa é larga e plana, assim, bem se presta à infestação de carros e motos desnorteados, logo, logo, ou antes, às noites altas, são reservadas, vez por outra, às exibições inconsequentes de pessoas e seus automóveis, quando então, sob a influência dos quadrupedes apoiados em suas duas pernas, os de quatro rodas dispensam duas, e os de duas, a se moverem, uma despendem, ou, dependem apenas de uma; ainda assim, ao dia seguinte, deixam espaço um tanto íntegro à caminhada para muitas pessoas que de vez em onde, em dois pés, como se quatro tivessem, não caminham consequentes...
Conforme já dissera, à porta da minha casa, há a montar guarda os meus fieis guardas — os meus cães de Gnaisse — ocupam-se em me resguardar daqueles que sem convite, querem se adentrar pelo meu espaço, e daqueles que pensam poder esquadrinhar o meu mundo, sem que eu lhos permita; com essa ou aquela intenção, tanto àqueles que querem, quanto àqueles que pensam, meus cães não dão confiança, pois em poucos confiam, ou até em menos...
Entre algumas pessoas, que passam pela rua da minha casa, a dar algum trabalho às pernas em benefício ao coração, há aquelas que lá estão a dar liberdade à língua em detrimento à vida alheia, e entre estas, há sempre os ladrões; e tantos há, que a ladrar para denunciá-los, os meus cães se mostram indispostos...
Por muito perceber quão indistintos são os meus cães entre si, haveria de esperar ver cada um deles, ver de forma indistinta, duas diferentes pessoas; contudo, a contrariar-me estão eles, pois dá-se uma situação inversa, qual seja cada um desses meus adoráveis e fieis amigos, tem olhar diferente a cada pessoa ímpar, logo, diferentes são eles entre si, com efeito, essa singular postura, não permite, diante de alguns movimentos delas — daquelas pessoas — que eles fiquem, por inteiro, indiferentes, contudo, muita vez, com muita facilidade, conseguem desprezá-las, pois prezá-los por presas jamais conseguiriam, por tão indigesta que é ao seu paladar, a carne humana... ainda assim, por tanto que meus cães veem músculos em movimento, no caminhar das pessoas, movimento para as suas mandíbulas, desejariam dar; mas, para o bem de todos, se mantêm hirtas, não só as bocas de alguns poucos transeuntes...
Do alto de seus pedestais — os dos meus cachorros – ao vento, que para ser digno de ser, em movimento deve estar, ou a esperar que se aquiete o ar, sob o calor, ou envoltos pelo frio, ou ainda, debaixo de chuva, e mais ainda, expostos à seca, entre eles — entre os meus cães — quando estão a observar as pessoas, o assunto é constante e diverso, contudo, não deixa de ser invariável, pois, protestam contra a obesidade que sempre se vê, enaltecem a magreza que escassa está a se tornar, condenam a gula, elaboram dietas, mofam dos tornozelos, elogiam joelhos; por fim, julgam as cabeças humanas, pelos seus dois pés, ou antes, pelo caminhar desses, julgam aquelas cabeças por escolhem essa ou aquela trilha... Amiúde, afligem-se meus cães pelo faro que têm, por tantos flatos que detêm, visto que, de baixo para cima, ou antes, para todos os lados, os odores são capazes de alcançar todos os ares; esses, por sua vez, necessariamente, alcançam o apurado olfato canino...
Não só más visões despertam os meus cães; uma vez que, vez por outra, entre as más, as boas estão a ser suscitadas pelos seus quase perfeitos semelhantes, que a caminhar ao lado de seus donos estão, ainda que contrafeitos...
Às mãos de outros viventes, esta faina de cães de pedra seria enfadonha, contudo, às patas dos meus cães, jamais poderia sê-lo, pois se o fosse, uma danosa consequência padeceriam eles eternamente, uma vez que eternos hão de ser os meus fieis amigos; esse é o meu desejo... A ser assim, por passarem por todas as estações, especialmente durante este verão, verão eles que um ou mais dos entes humanos, por doentes que estavam, não mais estarão entre nós......
* - Gnaisse - Rocha metamórfica feldspática, nitidamente cristalina, e de composição mineralógica muito variável.
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