Elias, O Coelho.
“De olhos vermelhos, de pelo branquinho”, o trecho daquela música era o pensamento mais recorrente no pequeno cérebro do Coelho Elias. Era a memória mais forte de sua breve infância ao lado da humana que mais a frente descobrira ser sua dona. Era difícil para ele compreender como uma criatura poderia ser dona de outra. Mesmo sendo mais inteligente, maior e mais bonita, o que dava àquela bela menina o direito de prendê-lo em uma jaula e dizer-lhe o que fazer? Até onde sabia, apenas as mães poderiam ser donas de seus filhos.
Era monótona a vida de gaiola, mas tinha suas vantagens. Elias frequentemente se via sentindo falta de ter comida boa de verdade à vontade, principalmente cenouras. Ah! Há quanto tempo não sentia o sabor adocicado de uma bela cenoura madura. Sentia também falta dos carinhos desajeitados de sua dona, embora muitas vezes ela o machucasse sem querer, mas era a única diversão que dispunha naquela época. Mesmo a música irritante sobre um coelho que põe ovos, ou algo assim, fazia falta. Tudo o que lhe restavam agora eram as lembranças turvas de momentos que não saberia definir se eram de todo bons ou ruins.
A vida não se tornara nem um pouco mais fácil depois que decidira ir embora. Elias aproveitou um descuido de sua dona e fugiu. Correu o mais rápido que pôde. Sentiu seu coração bater tão forte, que pensou que ia morrer, um castigo divino por se rebelar, mas sobreviveu. E aquele, por alguns instantes, foi o dia mais feliz de sua vida. Entretanto, a liberdade teve seu preço e, embora seu sabor fosse adocicado como o de uma cenoura, era igualmente dura. Arrependeu-se umas dezessete vezes por ter fugido, assim como mais dezessete vezes se arrependeu de ter se arrependido, depois de, em vão, tentar encontrar o seu antigo lar. Estava longe demais para saber voltar. Agora lidava com a fome, não estava acostumado a comer qualquer coisa. Tinha também predadores, muitos predadores de várias espécies, mas o principal continuava a ser o homem. Sempre que se deixava avistar, era perseguido, parecia ter algo no seu pelo branco que atraia a todos, ninguém ficava indiferente à sua presença.
Elias achava que ao sair pelo mundo encontraria semelhantes, mas não existiam coelhos livres naquela região, apenas cativos, como ele. Mas nunca ousou se aproximar para tentar conversar, com medo de voltar para o cativeiro. Tentou contato com roedores, embora não fosse exatamente um, decepcionou-se ao descobrir que não falavam a mesma língua. Na verdade, nenhum dos animais que encontrou dali em diante o compreendia. Todos pareciam interessados apenas em coisas banais de animais: comer, se reproduzir, dormir e fugir dos predadores. Elias se sentia sozinho, pois não se via seguindo a vida daquela forma. Queria algo mais. Sentia em seu âmago a vontade de descobrir algo mais, de sentir a mesma emoção que sentiu no dia em que se libertara. Assim viveu o resto de seus dias: desejando algo que nunca ia conseguir, pois se conseguisse, não iria querê-lo mais, com a sensação angustiante de que alguma coisa extraordinária estava para lhe acontecer. Até que numa tarde fria de agosto, um rottweiler deu a Elias o seu destino. Talvez fosse isso que tanto ansiava, afinal.