Conto de um Sábado
Responsavelmente levanta cedo, por volta das 4h da matina. Num pulo estilo gato caindo de altura, põe-se de pé. Tudo muito agalopado, vai à cozinha, pega o estojo de injeção na geladeira preparada na noite anterior pela esposa. Sua mão oscila ao pegar o retângulo de alumínio; ou tijolo de quase um quilo. Emborca-a com a tampa para cima no embornal e humildemente, dirige-se à bica. Lava a cara remelenta, escarra uma bola de gosma alimentada pelos restos de comida, regada com nódoa de cigarro. Juntando tudo na boca, despe do peito todo o catarro tingido de cinza fumacenta. Respira aliviado; até quando, é um mistério?
Manhã de uma segunda-feira envelhecida. Olhou o celular e leu: "10h, 32min e 59s. Descobriu a cara pálida pela marola da balada. Parecia um maço de papel amassado. Fachos de sol entravam pela janela. Puxou a cortina. O horário e o quarto escuro facultava-lhe cobri a cara. Ressonou mais um pouco. Despertou do segundo sono. Tateou o piso e apanhou o celular. Olhou a tela: "12h, 11min e 16s. Na ponta dos pés, foi à cozinha. Lançou uma folha fina de mortadela no resto de pão de forma que sobrara do café. Faminto, fez outro. Numa bocada infalível, triturou um deles. O outro seria devorado com mais cautela, parcimônia. Gritou: "Mããe"! - a não ser a sua, não havia viv`alma em casa.
Ela saíra cedo. Era dia de faxina brava na casa que trabalhava como diarista de quinze em quinze dias. A diarista sempre encontrava os ambientes da casa de ponta-cabeça. Iniciava os trabalhos pela lavagem das louças, fogão e geladeiras. A patroa desligara-as e a água já escorria pela pelo piso da cozinha.
18h. Pontualmente, o patriarca chega de volta. Descarrega o peso, bate o solado da botina contra a pedra que há no meio da trilha que sai do portão de folha dupla. Adentra a casa. Cumprimenta a esposa e em seguida, vai ao banheiro limpar o ventre. Sente-se estafado pelo peso da rotina.
Sua esposa recolhe os apetrechos. Com cheiro rançoso de putrefação, incontinente, lava o estojo de injeção. Naquela noite não escaldaria com água quente, como sempre fazia. Estava enjoada pelas cólicas da menstruação que a visitaria em breve. Conforme marcado na folhinha, dali dois dias teria alívio da importunação mensal. Meio salobra e pouco tomada, ainda era fonte de água fértil. Se o patriarca tivesse ânimo e estímulo, poderia banhar-se em seu remanso; por enquanto límpido e cristalino. Fundindo a falta de sede ao cansaço cotidiano devido a rotina de trabalho, os meses e anos passavam e nada dele banhar-se no regato, comparecer à fonte. Fato que sua esposa pouco dava importância.
Banho tomado; posta-se à mesa para jantar. Uns grãos de arroz, misturado com feijão andu. Naquela noite havia também rodelinhas de tomate, pequenos nacos de batata avermelhado pelo urucum. Dispensou o ovo frito; já havia comido no almoço. 21h, 46mim e 31s. Despediu-se da esposa. Passou o dedo indicador na arcada dentária, limpando-a; e caminhou em direção ao quarto. Lá, a penumbra de luz da lamparina bruxuleava pela pelas paredes, procurando sossego. Com os dedos polegar e indicador apertou o pavio, apagando a chama. Em questão de minutos adormeceu. Roncava solenemente. O pássaro preto e o canário belga completaram a sinfonia. Menos os gatos e cães, que sempre estavam em defendendo a honra, trocando farpas pelos restos de comida. Vez por outra, um cão aparecia com o focinho arranhado. Eram quase 23h e ainda acordados esperando alguma coisa que lhes cairiam tão bem quanto o chá noturno servido nas mansões e castelos dos nobres.
"Embora moremos debaixo do mesmo teto, nunca, jamais, eu e meu algoz comemos na mesma mesa". Dificilmente pensa, mas quando o patriarca pensa tal pensamento, desabafa consigo dizendo que humildade, benevolência e paciência tem limite.
O título do conto é "Conto de um sábado", mas como a vida do patriarca era tão rotineira e igual, que o título poderia ser de domingo, segunda, terça, quarta, quinta, sexta-feira; qualquer dia da semana era dia de estojo de injeção, levantar com os galos cantando, lavar a cara no fio de água fria da bica, escarrar a bola do mau hálito do dia anterior, botar no ombro embornal esfarrapado, pegar duro no batente, chegar em casa 18h, jantar, passar e pagar o pavio de luz da lamparina com os dedos e roncar sob a sinfonia regida pelo maestro: "quando o hoje será diferente de ontem; e o amanhã será diferente do hoje?" Mais de 30 anos nessa lama proveniente da chuva fina e constante; sob sereno que ensopa as vestes do desavisado.
Todavia, papeando com Deus em oração, o patriarca indagou-o sobre o que o Pai Soberano achava de um dia qualquer a tolerância chegar ao fundo poço, chegar ao limite zero e aí, como pensara várias vezes, sombras, varizes, estrias, estojo de injeção, dentaduras, aparelhos amarrados com arames e botinas de borracha voariam pelos ares.
- Como assim, paciência o quê, meu Deus! Tudo, toda medida tem limite, via de regra, é o meio; passado do suposto ponto mediano, é sinal que invadiram o espaço alheio.
Sua esposa nunca soubera o que passava na mente daquele homem sério, responsável, cumpridor e honesto. Aliás, tais adjetivos eram, paulatinamente, direcionados ao marido por ela. Por sua vez, ele a considerava uma santa mulher. Impossível outra igual. Belo achado!
Nas intimidades, o casal falava o elementar, porém necessário para uma união estável, tranquila e harmônica. Como o futuro a Deus pertence, por quanto tempo a harmonia reinaria naquela casa, somente o Criador para saber.
Era meia noite quando a matriarca recolheu-se ao lado do marido. Cutucou-o para cessar o ronco. Ele virou de lado e o ruído de hélice de helicóptero parou. Religiosa fervorosa, aproveitou o silêncio para orar; agradecer ao Pai por mais um dia.
Assim como o marido, ela dormiu rápido; e ambos dormiram um sono de cemitério até 12 min para às 4 horas da manhã de domingo.